Vivendo e aprendendo. Quando propus ao editor de OBarrete escrever uma crítica sobre o filme “Festim Diabólico“, de Alfred Hitchcock, ele me perguntou se se tratava de “A Corda“, como a obra é titulada em Portugal. Supus que sim, e foi desta forma que revi o crime do filme de 1948, com uma temática bastante filosófica e intrigante.
Com os atores James Stewart, John Dall e Farley Granger, este suspense e drama tem como cenário apenas um apartamento, e a cena inicial não poderia ser mais macabra: dois amigos enforcando e assassinando um outro amigo, David, mas o que chama a atenção são os motivos: Brandon (interpretado por John Dall) quer provar que consegue praticar o crime perfeito, que possui uma moral para além do bem e do mal, e que as normas reguladoras da sociedade existem apenas para os indivíduos inferiores.

Assim, interpreta muito mal o conceito de Super Homem do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Seu comparsa, Philip (interpretado por Farley Granger) titubeia e se enerva o tempo todo, dado o cinismo de Brandon. Este planeia um jantar macabro: pouquíssimo tempo depois, irão dar uma recepção a amigos e servirão os comes e bebes em cima de um baú, onde está a vítima.
A psicopatia de Brandon é charmosa: irónico ao extremo, afirma que David não poderia mesmo sobreviver, sendo um aluno de Harvard. Com a bela colunista de jornal que havia sido sua namorada, aventa que ela passou a namorar David por ser mais rico e quando todos os convidados já estão no recinto, expõe a teoria dos seres inferiores da sociedade, e que as normas não se poderiam aplicar aos espíritos fortes.
Sempre debochado, cria histórias da fazenda, onde viu Philip torcer o pescoço de galinhas. Este está cada vez mais nervoso, com sudorese, e o pai de David, incomodado com os rumos da conversa, se impacienta e dá como exemplo Hitler, que seguiu à risca e deturpou o conceito do Super Homem.
Dentre os convidados, o professor de Filosofia e agora editor Rupert Cadell (vivido por James Stewart) que se enfadonha com a tia de David, uma astróloga que não consegue nomear as peças das quais fala e que diz que “quando era criança possuía o hábito da leitura“. Mais uma deixa para o belo e sedutor Brandon proferir mais uma de suas tiradas: “As crianças têm mesmo o hábito de fazerem coisas estranhas“.


A corda usada no enforcamento, esquecida num primeiro momento perto da arca que contêm o corpo, é entregue por Philip a Brandon e este afirma, tranquilizando-o, de que apenas é um instrumento de cozinha. O pianista Philip vai perdendo a compostura. Interessante notar um recurso até simplório: estando todos confinados num pequeno espaço, é irreal supor que os criminosos possam disfarçar os diálogos falando em voz alta, como se não tivesse mais ninguém na sala. Brandon já se dá conta de que Philip também é um fraco, que não irá conseguir controlar-se.
O pai de David, muito preocupado com a ausência do responsável rapaz, e notadamente incomodado com os rumos da conversa elitista, vai-se embora, mas antes leva alguns livros que lhe foram presenteados e foi aí que reparei o óbvio: os livros foram amarrados a uma corda, a mesma que serviu para o enforcamento. Daí a simbologia clássica: ideias, teorias e livros quando mal interpretados, podem até matar. Embora não seja citado, é mister entendermos que o romance “Crime e Castigo“, de Fiódor Dostoievski (1821-1881) é referência.
O cinismo de Brandon só encontra oposição no professor de Filosofia, que, observador, frio e racional, repara bastante nos dois criminosos e pressente que as mentes perturbadas deles pudessem ter praticado um crime. É quando abre a arca e comprova o facto. Angustiado, esclarece aos dois que eles deturparam tudo aquilo que lhes havia sido ensinado e, após desarmar Brandon que estava com uma arma no bolso, e de se atracar com Philip, como alarma para chamar as autoridades, abre a janela do apartamento e dispara o revólver. A cena final é límpida e reveladora: sem maiores emoções, Brandon toma mais uma bebida, Philip dedilha no piano e o professor desconsolado aguarda a polícia.
O Mestre do Suspense, em um dos seus filmes mais famosos, oferece-nos uma discussão bastante atual até os dias de hoje, quando muitos usam amigos como meio, e não como fins em si mesmos, o que impossibilita o exercício da amizade para as relações dos simples e vis interesses. Um filme soberbo!
Muito bom.Elucidativo .
Augusto, obrigado por vosso comentário! Abraços!