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A filósofa judia, radicada na Alemanha, Hannah Arendt (1906-1975) é uma importante pensadora que viveu toda a loucura do nazismo, no antes, durante e depois, e tem muito a dizer-nos ainda hoje, em tempos de tentativas autoritárias de governos inescrupulosos e medíocres.

Hannah estudava Filosofia e foi aluna do brilhante Martin Heidegger (1889-1976), considerado por muitos o maior filósofo do século XX. Uma coisa era o pensador brilhante e arguto, o autor de “Ser e Tempo“; outra coisa era o homem que se calou durante o governo tirano de Adolf Hitler e que chegou a ter uma carteirinha do Partido Nazista. Arendt apaixonou-se pelo professor, com quem teve um caso, sendo que Heidegger a orientou numa tese académica sobre o amor em Santo Agostinho, até que a política os separou, ainda mais que como judia a filósofa foi expatriada da Alemanha, encontrando asilo nos Estados Unidos. Antes disso, Hannah também sofreu a influência de outro importante filósofo, Karl Jaspers (1883-1969).

Martin Heidegger

Não irei relatar aqui o que foi a loucura do nazismo (penso que cada um tenha já consolidada a sua impressão), mas convido a relerem aqui no Barrete a análise crítica da autobiografia de Hitler, “Mein Kampf“. Irei me ater agora às consequências desta loucura nacional-socialista alemã e investigar os julgamentos dos carrascos nazistas pelos crimes contra a humanidade. E é aqui que se cruzam as histórias de vida de Hannah Arendt (então uma repórter da revista norte-americana The New Yorker, que a envia a Jerusalém para acompanhar o julgamento de Adolf Eichmann, que tinha sido capturado em Buenos Aires, na Argentina). Isto no início da década de 1960.

Arendt escreve então uma série de reportagens para o seu veículo, o que resultaria naturalmente no livro documentário “Eichmann em Jerusalém“. Com olhar de filósofa, muito mais do que uma ideóloga ressentida (lembremos que ela fora expulsa da Alemanha pelos nazistas) e investigando para além de uma mera escrita de repórter, ela começa a perceber a personalidade daquele ser humano que estava a ser julgado. Cabe aqui uma descrição do perfil de Eichmann: pai de família exemplar, cumpridor de todos os seus deveres, tentava melhorar a sua vida galgando as posições de carreira dentro do Estado Nazi e era uma pessoa que obedecia às ordens.

Sim, ele foi um dos funcionários do asqueroso programa de matança aos judeus, a Solução Final, mas entendia o seu trabalho com todo o aparato burocrático da mesma forma que um funcionário do Futebol Clube do Porto é contratado para irrigar o relvado do Estádio do Dragão. Que loucura! O sujeito Eichmann apenas obedecia a ordens, e certamente ia tranquilo para a sua residência após deliberar a matança de outros seres humanos. Eichmann tinha menos remorso do que um fazendeiro que se vê obrigado a liquidar o seu gado pelo mal da “vaca louca”.

No tribunal, o acusado a todo momento respondia que os crimes a ele imputados não condiziam com a verdade, e que ele não era o monstro que todos o acusavam de ser. Defendia a tese de que, como um funcionário exemplar do governo alemão naquela época, aquilo era o certo a fazer e ele apenas cumpria o seu dever. Insisto neste ponto do homem honrado que cumpre bem o seu serviço para revelar a mesma estranheza que Hannah Arendt certamente sentiu ao vê-lo de perto.

Adolf Eichmann no seu julgamento

Aquilo ali (dou ênfase no aquilo) não era um ser humano que tinha a capacidade de pensar por si próprio. Ele fora adestrado a ser um homem de partido, a ser um bom funcionário e, como tal, abdicou de toda a aventura de ter uma opinião própria. Ele era lobotomizado. O seu discurso era um amontoado de clichês e frases feitas e, até na hora da sua morte, por enforcamento, bradou, no momento final: “Alemanha. Áustria. Argentina“.

As reportagens da filósofa foram recebidas com bastante polémica, principalmente na comunidade judaica da qual ela fazia parte. Mas é importante compreender que ela em nenhum momento tentou edulcorar a figura de Eichmann, e sou daqueles que pensam que certas palavras dirigidas a nós machucam mais que bofetadas. Arendt julgou estar diante de um robô, de um ser humano medíocre que não fazia nada além do seu dever.

A atualidade deste relato é percetível e devemos atentar-nos contra os filhos das serpentes que insistem em brotar em algumas partes do mundo. O nacional socialismo exacerbado caracteriza a xenofobia, o discurso autoritário do líder medíocre que impõe a sua vontade fazendo com que grupos descerebrados o acompanhem como autómatos e se percebam bem, é notório os clichês do senso comum de muitos ideólogos de partidos hoje em dia (“Pátria. Honra. Deus. Família”), contrastando com as características de pensadores que alargam as suas respetivas visões abarcando a investigação da verdade não como oriunda de partido A ou B, mas de um todo e nunca tentando dizimar o diferente, mas antes acolhendo-o.

“Eichmann em Jerusalém” é de leitura obrigatória para percebermos até onde pode chegar a banalidade do mal, que é o termo consagrado pela autora a este nefasto encontro com a sua própria história.

Encerro com uma curiosidade engraçada de quando a filósofa ministrava aulas nos Estados Unidos. Um dos seus alunos, Celso Lafer (que chegou a ser Ministro das Relações Exteriores no governo brasileiro de Fernando Henrique Cardoso) apresentou-se um dia na sala de aula a barba por fazer e estava com uma aparência cansada. Ao que a filósofa brincou com ele, afirmando que o externo refletia o interno e era para ele se cuidar melhor. O puxão de orelhas surtiu efeito. No dia seguinte, Lafer estava com o rosto parecendo ‘bumbum de neném’.

Assistam também ao filme “Hannah Arendt“. Realizado por Margarethe von Trotta, este drama de 1 hora e 53 minutos traz Barbara Sukowa no papel título. Espetacular!

Marcelo Pereira Rodrigues

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One thought on “Hannah Arendt e a banalidade do mal

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