“E se os mortos deixassem de estar mortos?“. Enquanto nos dias de hoje a ideia soa vulgar, no final da década de 1960 o vislumbre dos mortos-vivos era algo quase revolucionário. Quase, porque a ideia do zombie não era propriamente nova e tem inclusive uma origem menos sensacionalista do que aquela que o realizador e argumentista norte-americano George A. Romero viria a popularizar em “Night of the Living Dead”. Fortemente associado à escravatura, colonização e magia negra, o ser penante foi retratado em filmes como “White Zombie” (1932) e “Zombie” (1943), espelhando o horror de não sermos donos do nosso próprio corpo.
Em “Night of the Living Dead”, em português “A Noite dos Mortos-Vivos“, a essência dos antagonistas é ficcionada e transformada naquela que está presente na consciência popular: o zombie enquanto cadáver reanimado que deambula incessantemente sem rumo ou lógica, devastando o rasto humano.

No argumento deste clássico, o primeiro ataque é a Barbara (Judith O’Dea) e ao seu irmão, que viajaram até um cemitério remoto para visitar a campa do seu pai. A investida é rápida e inesperada. Aterrorizada, Barbara consegue escapar por pouco e refugia-se numa casa de campo abandonada, perdendo pelo caminho a sua estabilidade emocional. Pouco depois, Ben (Duane Jones), que está à procura de gasolina, também procura abrigo na mesma casa. Cercados por um crescente número de mortos-vivos, Ben tenta fortificar a porta e as janelas, mas os problemas que surgem dentro da habitação revelam-se tão ou mais desafiantes do que as circunstâncias exteriores.
Com um orçamento apertado e uma escrita económica, a estreia do cineasta é mais do que uma peça de museu. Através das suas qualidades técnicas e temáticas, o filme sobrevive à erosão do tempo e adquire um caráter revisitável. Primeiro que tudo, porque o drama está assente nas personagens. A certo ponto da narrativa surgem mais personagens em casa dos protegidos, criando conflitos desnecessários. Quezílias essas que comentam sobre a incapacidade do ser humano trabalhar em conjunto para um fim comum perante uma situação de vida ou de morte. A esta questão universal vem juntar-se o facto de Ben ser uma pessoa de raça negra.
Apesar de Romero ter esclarecido que não havia nenhuma intenção racial no casting – a personagem foi escrita sem cor de pele em mente – o que é certo é que desencadeou uma série de interpretações que na perspetiva do crítico que vos escreve têm fundamentos. Nos anos 60 havia insurgência nas ruas norte-americanas em prol da igualdade racial. Pelo contrário, os cinemas norte-americanos continuavam a tipificar o homem negro, como podemos analisar na película “Adivinha Quem Vem Jantar” (1967).
O que vem ajudar a quebrar essa tipificação e a olhar o homem negro como um indivíduo determinado, que luta por si e pelos outros, capaz, se for necessário, de fazer frente ao homem branco, é “Night of the Living Dead”. A forma como Romero escolhe terminar a película apenas vem deitar mais lenha para a fogueira.

A sustentar estas convicções está a criação de um exercício estilístico que oferece muito mais do que choques baratos. A atmosfera é de profundo desespero, a presença dos errantes é crescentemente ameaçadora e a fotografia a preto e branco retira o foco no sangue e nas tripas para enfatizar a natureza medonha das criaturas e conceber visuais marcantes. Além do mais, o filme tem um começo vibrante e apenas ocasionalmente desacelera a sua tensão. Seja através das relações interpessoais, pontos do enredo ou o avanço persistente dos zombies, está montada uma história onde não há minutos mortos.
A década de 1950 não é particularmente memorável no que diz respeito ao género de horror. O foco de assustar ou arrepiar foi desviado para o entretenimento barato, sustos fáceis e interpretações histéricas. “Night of the Living Dead” é uma obra-prima que vem estender uma passadeira vermelha para o retorno da inquietação, o retorno da repulsa, o retorno de uma verdadeira experiência de terror.
Muitos filmes prezados seguiram o molde e o género teve um célebre comeback na década de 1970, estabelecendo George A. Romero como um dos protagonistas desta categoria (“Zombie: A Maldição dos Mortos-Vivos” (1978), por exemplo). É caso para dizer que o cineasta não deu apenas meia vida aos mortos, como também ajudou a despertar um género cujos valores estavam sonâmbulos.
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