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Porque A Arte Somos Nós

Nota: Tendo em conta o tema central desta obra, é por bem deixar claro que esta é uma crítica 100% isenta de qualquer ideologia política ou social, olhando só a factos e tendo como ponto de partida a obra literária e o contexto histórico nela inserido.

Adolf Hitler (1889-1945) é um dos personagens mais emblemáticos do século XX. É seguramente a figura mais odiada do século, responsável pelo extermínio de seis milhões de judeus em campos de concentração. Ironicamente, quis o destino que o estadista que dava tanta ênfase à propaganda fosse perpetuado pela mesma através de filmes, jornais, revistas, etc. A gama de publicações acerca de Hitler e do nazismo impressiona. Muito seguramente, qualquer um de nós se depara com frases tipo: “Hitler era muito inteligente!”; “Apesar de ruim, Hitler era um visionário!”, ou então com a recorrente pergunta: “Seria Hitler culpado?”.

Particularmente, sempre gostei de analisar personalidades históricas à luz da razão. E além de todos os filmes que assisti (destaco aqui “A Queda: Hitler e o Fim do Terceiro Reich“, realizado por Oliver Hirschbiegel), de todas as revistas especializadas e de algumas obras apenas sensacionalistas, não poderia ter uma visão clara se não lesse as próprias ideias do estadista alemão. E foi com esse intuito que li “Minha Luta” (título em português), um maçudo diário de 509 páginas que por vezes me causou repugnância, revolta até, por rompantes de ódio de um grande visionário, isso não posso negar.

Não é lícito tratar a figura de Hitler sem estudar a fundo o mapa da Europa do início do século XX. (Aliás, sugiro aos leitores lerem esta resenha tendo em mãos um bom mapa do mundo, de preferência aberto sobre a mesa). Antes de eclodir a Primeira Grande Guerra, a Alemanha era uma grande potência europeia.

Mapa da Europa em 1919, após o fim da Primeira Guerra Mundial

O Império Alemão era constituído do que é hoje a Alemanha, mais os países dos Balcãs, além de Luxemburgo, atualmente independentes (notadamente Luxemburgo tem mais a ver com a França nos dias atuais). A França que fazia e faz fronteira com a Alemanha era uma das potências mundiais. E fazendo parte da outra fronteira, o Império Russo com suas longevas terras e seu vasto território.

Incrustado numa ilha, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda, a temível Inglaterra, que merece um destaque: como uma ilha separada do restante da Europa pôde ao longo da história estender os seus domínios para todo o mundo? Pelo viés militarista e corajoso desse povo, que era temido pelo próprio Hitler. Pode parecer ironia do destino, mas o jogo de forças no continente europeu estava em zona de conflito entre o Império Alemão e o Império Russo. Ambos intentavam estender os seus domínios para os países dos Bálcãs, por estratégia territorial (uma porta de saída para o Mar Mediterrâneo).

O arquiduque austríaco Francisco Ferdinando é assassinado em Sarajevo por dissidências ideológicas e políticas, vitimado por um sérvio. A Alemanha desce com mãos de ferro para dominar de vez a Sérvia, impondo-lhe sanções expansionistas.

No jogo de forças de uma guerra (quem conhece o jogo “War” sabe do que estou escrevendo), a Europa se arma para evitar essa expansão alemã. O Império Alemão se arma com a deflagração do conflito. E fica espremida no meio de três oponentes: Rússia, França e Inglaterra, que há tempos queria dar um ‘basta’ nessa expansão política e militar. Não bastasse o enfrentamento, o Império Alemão se mostra dividido. Não existe como unidade, como pretendiam as autoridades. Minorias separatistas não lutam com esse fervor todo, pois muitos não se sentem alemães de fato, caso mais precisamente da Áustria.

E é um austríaco soldado raso e que havia mudado mais para o norte alemão (nasceu em Braunau no Inn, uma província, mudando-se depois para Viena, capital do Império Austro-Húngaro, e depois da guerra se instala em Munique), que encarna com fervor ideológico essa batalha. Megalomaníaco na concepção da grande Pátria Alemã, Adolf Hitler luta até ao fim a guerra perdida.

Soldado heróico, não foge à luta recebendo uma medalha de honra no fim do combate. É vítima de uma bomba a gás que quase o cega. E com o anúncio da derrota e o evidente custo da guerra que recai sobre os alemães, Hitler se traveste de nacional-socialista, defendendo teses acerca dos motivos que determinaram a derrota da sua nação no conflito. E é em “Minha Luta” que ele enumera estes aspectos:

1.º – Quando o Império Alemão compreende que poderia contar com o Império Austro-Húngaro, cometeu um erro terrível. Ele discrimina a eslavização do povo alemão, com aqueles estados mais ao sul. Hitler equaciona a questão assim: eslavos = judeus (o que não deixa de ser um facto). É interessante um austríaco detestar tanto o seu próprio torrão natal. Hitler sentia-se alemão, ariano, puro e destinado a uma grande missão libertadora de seu povo;

2 – O seu ódio aos judeus não pode ser justificado, mas tem lá suas razões de ser. Hitler é imbuído de um ideal nacionalista de Pátria e Dever que despreza aqueles apátridas judeus que, através do capital financeiro internacional, desenvolvem “suas artimanhas de guerra”. O que é um fato é que os judeus não entraram e nunca entrariam em Guerras Mundiais, pois o seu ideal é o além das fronteiras.

Devo esclarecer que aqui não faço nenhum juízo de valor. Segundo Hitler, sob a falsa aparência de povo pacífico e devotado à cultura, o judeu é um povo pusilânime que para atingir o seu fim expansionista não pensa duas vezes em jogar uma nação contra a outra. O seu “internacionalismo” é a desculpa perfeita para acabar com todas as fronteiras do mundo, uma vez que ele próprio não se comporta dentro de uma;

3.º – Nesse ponto, é válido lembramos de Karl Marx que, já no século passado, propagou as suas ideias através de convenções internacionais de trabalhadores, sendo enfática a sua frase, que soa como sentença: “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!”. Lógico que a concepção marxista apregoaria o além-fronteiras, na sua luta contra o capital internacional. Hitler via nesses dois aspectos um mal a ser combatido: o capital e o marxismo.

Karl Marx

Didaticamente, vou expor: o capital é o meio pelo qual se asseguram as potências no início do século XX. É o que acaba delimitando suas fronteiras, mas, ao mesmo tempo, intenta transpô-las. Já o marxismo não se atenta a nenhuma concepção de pátria, entendendo-se espoliados e explorados por nações (industriais) e em constante luta contra elas. Para Hitler, o simplismo passa longe da sua pretensa inteligência: Karl Marx é judeu e apregoou uma doutrina com a intenção de acabar com as nações independentes. Isso significa o ódio de Hitler a todos os marxistas, a de um povo que luta uma batalha visando apenas aos seus interesses.

4.º – Um ano antes do fim da Guerra, ocorre a Revolução Russa que pretensamente leva os operários ao poder. Aí sim a visão e observação de Hitler é justificada: enxerga nos detentários do poder usurpado o que há de pior na escória de uma nação. Líderes sem sentimentos patrióticos, preocupados apenas com os seus próprios interesses. Revelando a Revolução Russa: ela foi concluída e consumada com as ideias marxistas e a prática de um estado totalitário que soma uma grande extensão territorial ao Leste.

5.º – A Alemanha do pós-guerra é uma lástima: um povo oprimido pelos Tratados de Paz (impostos, claro), sem a força de uma grande nação e já reduzida ao sul e a oeste. Assina o Tratado de Versalhes e admitirá toda espécie de humilhação por parte das potências vencedoras, mais especificamente a França. Nesse ponto, é válido ressaltar que a Inglaterra e a Rússia vêem com suspeita essa expansão territorial francesa, com a invasão do Vale do Ruhr. (Fazendo uma analogia grosseira, seria o mesmo que num futuro conflito entre Brasil e Argentina, e com a vitória dos hermanos, eles, depois de nos proporcionar as mais terríveis humilhações, tomassem conta de nossas importantes siderúrgicas).

Nessa Alemanha em derrocada, o ódio de Hitler só faz crescer. Militar que era, doaria a última gota de sangue para não sair do conflito, mas isso não coube a ele. Chama de “palermas” os alemães que se renderam simplesmente e dispara a sua teia de xingamentos. Uma nação imperiosa não podia ser feita de covardes, judeus filisteus e outras raças que nunca foram verdadeiramente significantes para a Pátria;

6.º – Adolf Hitler passa longe de ser um intelectual, ao contrário. Afirma categoricamente que a honra de uma Nação se faz mais com uma espada do que com uma pena de escrever. Alia a figura do burguês com a figura do intelectual, enxerga na propaganda de guerra aventada por jornalistas judeus a fazer fracassar o esforço de guerra (no que logrou êxito) e que agora tenta infiltrar a “praga do comunismo na Alemanha”. Visionário, sonha o tempo todo com a insurreição do seu povo, mas, estrategicamente, sabe que tem que preparar o terreno.

7.º – Sindicato ou partido? O que Hitler pretende fazer nessa Alemanha em ruínas? Com olhar sagaz, compreende que quando um indivíduo colabora para um partido, contribui a “fundo perdido”, ou seja, não fazendo caso daquele investimento. O contrário se dá com o sindicato, uma vez que o egresso sempre irá reivindicar as contrapartidas. Embora Hitler reconheça nos sindicatos uma força importante, ambiciona a criação de um partido.

Marginalmente, funda assim o Partido Trabalhista Alemão. Mas, que fique bem claro: nada a ver com os sindicatos marxistas e de suposto amparo aos trabalhadores. As reivindicações de Hitler são mais grandiosas e nacionais: um amor pela Alemanha acima de tudo. E uma missão que só poderia caber a um visionário: começar do nada um movimento que se alastraria por toda a Alemanha e algumas partes da Europa.

Adolf Hitler

A precariedade das instalações do partido beira ao ridículo. O próprio Hitler cita: “Quando, no outono de 1919, entrei para o Partido, então composto de seis membros, este não tinha nem um escritório nem um empregado; nem mesmo formulários, carimbos, impressos, existiam. O local para as reuniões do comité era, a princípio, um restaurante na Herrengasse e mais tarde um café em Casteig. Isso era uma situação intolerável. Pouco tempo depois pus-me a visitar um grande número de cervejarias e restaurantes de Munique, com a intenção de poder alugar um quarto separado ou qualquer outro local para o partido” (Editora Centauro, página 438).

8.º – Desde muito cedo, Hitler via na propaganda uma forma eficiente de fazer crescer a sua causa. Lutando com as armas do inimigo judeu (mestre em fazer a imprensa que melhor os convêm), Hitler cria os boletins entendendo que um enunciado rápido pode captar adesões para as suas ideias. É digna de nota a sua compreensão do quanto as pessoas ignoram solenemente os grandes pensamentos dos articulistas de jornais, os ditos intelectuais. Inspira-se nas cores vermelhas (bem chamativas) para levar o povo a se interessar pelas reuniões. Inspeciona tudo (com o tempo, essa será uma de suas características mais marcantes). É plantada a semente de um grande monstro.

9.º – Hitler, intelectual até certo ponto medíocre, entende isso e proclama que uma nação se deve erguer com oradores e não com escritores. Febril, apaixonante no seu discurso, Hitler fala para uma plateia de seis testemunhas. Daí 60. 600. 6000. Sua eloquência verbal, sua postura no palco e carisma inflamam o povo. Mesmo quando era uma simplória minoria, Hitler contava com companheiros leais que morreriam para que ele falasse, pois sempre se infiltravam adversários para ver o que estava acontecendo nesses comícios.

O espírito guerreiro de Hitler estava ressuscitado: trocara o fuzil pelas palavras. Personalista ao extremo, encarna o pensamento de que “o forte é mais forte sozinho”. Organizando seu ideário no Partido que viria a ser denominado mais tarde Partido Nazista, sente-se imbuído por Deus de conduzir o povo alemão ao seu papel de relevo, perdido após a derrota na Primeira Guerra.

Despercebido a princípio, cresce de tal modo sua influência que o poder oficial decreta a sua imediata prisão e suspensão do Partido. Sem querer e, como sempre acontece, o “Estado de Direito” legitima a influência desse austríaco com megalomania pelo sangue ariano alemão. É na cadeia que Hitler escreve “Minha Luta”, que será a Bíblia do Nazismo nos anos vindouros, a cartilha de propagação de sua doutrina.

“O forte é mais forte sozinho”


Hitler

Raça: conceito empregado por Hitler

Um dos pilares da doutrina nazista é acerca da supremacia de uma raça sobre outra. Com visão distorcida a esse ponto, Adolf Hitler enxerga na França a maior ameaça à soberania do povo alemão. Porquê? Hitler tem uma visão territorial muito bem definida e já observa a futura super-população da Alemanha e dos demais países europeus. Preocupa-se com o facto de a França avançar as suas fronteiras para África (no seu plano de colónias) e contribuir assim para o enfraquecimento da raça europeia no continente. Dessa forma, não apenas o judeu, mas o negro vem “contaminar” (palavras dele) o continente. Nesse ponto, não dá para não sentir asco de pensamentos tão rasteiros.

Ele cita: “Em poucas palavras, o resultado do cruzamento de raças é, portanto, sempre o seguinte: A) Rebaixamento do nível da raça mais forte; B) Regresso físico e intelectual e, com isso, o começo de uma enfermidade, que progride devagar, mas seguramente. Provocar semelhante coisa não passa então, de um atentado à vontade do Criador. O castigo também corresponde ao pecado. Procurando rebelar-se contra a lógica férrea da Natureza, o homem entra em conflito com os princípios fundamentais, aos quais ele mesmo deve exclusivamente a sua existência no seio da humanidade. Desse modo, este procedimento de encontro às leis da Natureza só pode conduzir à sua própria perda” (Editora Centauro, página 213).

Vale ressaltar que, diferente do marxismo que geralmente não concebe a ideia de um bom Deus, Hitler era fervoroso. As suas menções ao Criador Todo Poderoso fazem parte já da sua retórica.

Voltando à questão da propaganda, ela permeia tudo aquilo que se fará na organização partidária de Hitler. Todos os passos do estadista alemão estarão em conformidade com sua doutrina ideológica de um Estado Racista Nacionalista. Quando, em 1926, finda seu livro, está pronta a Bíblia do Nazismo que conduzirá os adeptos a uma retomada do país.

O que mais chama a atenção nesta obra é a maneira pela qual o nacionalismo exacerbado pode cegar as pessoas a ponto de se tornarem conduzidas por um líder messiânico que intenta expurgar e erradicar da face da Europa uma raça inteira. O que fica para o presente é o seguinte: realmente a História necessita de um tempo considerável para julgar fatos. Certamente, o advento do nazismo tem muito a ver com a crise da Bolsa de Nova Iorque em 1929, mas isso é lá outra história.

A primeira derrocada do capitalismo mundial proporcionou a Hitler fortalecer suas baterias e quando o mundo voltasse do knockout financeiro, já veria o ressurgimento de uma grande nação. Forte, combativo e destemido, os idos dos anos de 1930 já apresentarão Adolf Hitler no poder. A Alemanha é Hitler. Hitler é a Alemanha. E a propagação de “Minha Luta” é quase sintomática: o maçudo livro inspira uma geração de alemães.

A pretensão deste artigo é panorâmica e não intenta abarcar o todo. Limita-se apenas ao período de elaboração dessa obra, o nascedouro das ideias de uma lagartixa que se transformou em monstro! Mas, de toda forma, é um livro que merece ser lido, até pela revolta que às vezes nos causa. Na dedicatória, Hitler aponta seus bravos companheiros que morreram no conflito, mas que lutaram por uma Alemanha vitoriosa.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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8 thoughts on ““Mein Kampf”: Ideias controvertidas de Hitler encontram eco nos dias atuais?

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