Confesso que passei a graduação de Filosofia implicando com as ideias de Martin Heidegger (1889-1976). O erro estava comigo, observo isso 20 anos após. O meu preconceito deu-se devido à sua adesão ao Partido Nazista, em 1933, mas analisando em retrospetiva, não posso culpá-lo pelas atrocidades da política genocida de Adolf Hitler (1889-1945). Coincidência, ambos nasceram no mesmo ano. A minha anacrónica observação talvez exigisse do homem público Heidegger uma denúncia contundente contra o extermínio de judeus, mas quando este se silencia e segue a sua vida a lecionar e a filosofar, irrita-me um pouco.
Mas quem sabe ele não se tenha fechado em si mesmo e nessa concentração extremada professasse a voz filosófica do século XX? Pois é isso mesmo: posso não gostar dele, mas certamente é o filósofo mais importante do século XX. Deixando o preconceito de lado, buscarei neste breve artigo um conceito, “bebendo o mingau quente pelas beiradas” (expressão usada por nós mineiros, da província brasileira das Minas Gerais), pois, absorver o núcleo da sua filosofia, pode nos causar um AVC (Acidente Vascular Cerebral) e, do mesmo modo que não procuro essa ocorrência, não quero proporcionar isso aos seletos e diletos leitores do Barrete.
Feito este preâmbulo um pouco desanimador, advirto não se tratar de nada disso. Heidegger exige-nos investigação profunda, mas sobre uma matéria muito pertinente a cada um de nós: a nossa existência. Isso mesmo, a nossa existência. Este olhar para dentro afasta-se do mundo irrefletido e da emergente técnica, essa mesma que desprende a noção científica das coisas separando-a da Filosofia. O pensador alemão analisa o fosso das pessoas que passaram a correr feito cão atrás do próprio rabo e abriram mão de pensar. Esse homem técnico que despontava no início do século XX, está aí o Ford que não nos deixa mentir, fratura em si o ensimesmamento filosófico necessário à compreensão das nossas existências.
Na sua obra literária “Ser e Tempo“, um dos grandes livros do século XX e da História da Filosofia, ele irá investigar o Da-sein, o ser aí no mundo. É bastante interessante a sua diferenciação entre Ser e Ente, mas não irei aprofundar aqui neste momento. Embora refutasse a conotação de existencialista, mas certamente o foi, sendo influência direta para filósofos como Jean-Paul Sartre (1905-1980) – que exploraria isso no seu excecional livro “O Ser e o Nada“. O que seria este ser-aí de Heidegger?

É o ser que se vê lançado ao mundo, tendo que abraçar todas as possibilidades referentes ao seu existir e diferentemente dos animais irracionais, que vivem por instintos, o homem racional sabe porque vive, qual o seu papel e responsabilidade no mundo e ainda sofre as angústias alusivas ao entendimento de que é contingente, que é um ser que será colhido pela morte e esse desaparecimento deve lhe ocupar (e não pré-ocupar) de modo a viver com mais autenticidade durante esse existir. Daí o seu pensamento:
“Morrer não é um acontecimento. É um fenómeno a ser compreendido existencialmente.“
Estudando Heidegger, reflito que ele tem muito a dizer-nos acerca do mundo de hoje. Vamos tomar mais um pouco desse “mingau”? Quando observamos as pessoas pouco ou nada preocupadas com a modalidade do pensamento, sobre as suas próprias existências, desconfiamos que a alienação técnica agrilhoou todos na sua teia de consumo. Se eu existo para aparecer tão somente nas redes sociais, se eu existo apenas para adquirir apetrechos eletrónicos ou para consumir automóveis, bem, essa é uma existência fraturada, inautêntica.
Quando reflito sobre essa angústia do viver, mas sem ficar deprimido por conta disso, e investigo as causas dessa angústia, abraço a autenticidade chamando-a para uma dança permanente. Todos sabemos do afastamento da Filosofia neste mundo da técnica exacerbada, estamos apenas a existir como consumidores e não como pensadores e foi a isso que Heidegger se dedicou e ousou ir além do grande filósofo que foi, afastando-se da filosofia técnica para se denominar apenas e tão somente o Pensador.
O pensador que se investigava profundamente a si mesmo se retirava por temporadas para a sua casa de campo na Floresta Negra e, certa vez, sofreu uma epifania ao observar os trabalhadores braçais e ignorantes com as ditas coisas do mundo civilizado. Observou, observou e observou, chegando à conclusão de que aqueles homens, simples empregados da fazenda, que viviam com os pés na terra, eram muito mais filósofos que muitos professores catedráticos.

Sugeriu a possibilidade de serem eles uma reencarnação dos pré-socráticos, os gregos que estando com os pés fincados na terra, investigavam as causas primeiras nas suas incipientes tentativas de explicação do mundo. Tenho a felicidade de me encontrar às vezes com os chamados homens do campo, e quando observo as práticas de alguns, muito distantes das muitas tolas atualizações nossas de status, remeto a Heidegger e intimamente percebo estar diante de um pensador autêntico, aquele que ainda não se corrompeu com os ensinamentos do dito mundo moderno.
Heidegger é este filósofo provocador, amplo, profundo. É impossível ler um tratado seu e chegar à conclusão de que aprendemos tudo. Não. Com Heidegger candidatamo-nos a aprender, a apreender. Esse jogo de palavras é intencional, pois o filósofo é tão imbricado que pensa a linguagem como forma de se expressar, e toda a tradução do alemão torna-se complicada e incompleta a partir do momento em que na língua latina não encontramos muitos termos expressos na língua oficial. Que este primeiro artigo aqui no Barrete seja um tubo de ensaio para eu continuar a investigar as possibilidades.
Sobre o tempo, assisti a uma vídeo-aula sobre um professor brasileiro que se impregnou de Heidegger por mais de 60 anos. Estudante de Filosofia na Sorbonne, candidatou-se a um curso proferido pelo próprio Heidegger e como filólogo e tradutor, conseguiu verter à tradução este hercúleo trabalho que foi proporcionar a leitores brasileiros o “Ser e Tempo”.
Dois dados biográficos de Heidegger são importantes de se realçar: se é facto que devido à sua adesão ao Partido Nazista foi-lhe permitido ser reitor da Universidade de Freiburg, o certo é que ele não permitiu perseguições antissemitas na sua gestão, o que lhe causou dissabores com alas mais radicais. Outro dado foi o romance com a sua aluna e discípula judia Hannah Arendt (1906-1975), embora ele não tenha assumido a relação. Deixo a todos o convite a investigarmos mais acerca das nossas possibilidades neste mundo que aí está, pois a tarefa é grandiosa e gratificante!
Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!