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Porque A Arte Somos Nós

Arioswaldo estava naquele momento sentado na Praça da Independência, no coração de Montevidéu. Vinha de Rio Espera, uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, Brasil, e deixara a administração de sua casa a um enteado. Aos 60 anos, aposentado, reconhecido filósofo por sua originalidade na forma de pensar a vida, sempre valorizando o ser em detrimento ao ter, ousou ser diferente em um mundo de iguais. Viajara ao Uruguai e tinha sido a primeira vez em que entrara em um avião.

Fora de Rio Espera até o aeroporto de Confins (Belo Horizonte), de Uber. Tivera dificuldades com a documentação até embarcar na aeronave da Gol com destino a São Paulo. Quanta gente! Chegara a Guarulhos e esperara quatro horas até o voo para Montevidéu. Quanta gente mais! “Será que a população total do mundo está neste aeroporto?” Escolhera um hotel na Avenida 18 de Julho e agora estava ali, admirando a arquitetura do Palácio Salvo e sentindo-se retirado do mundo.

Como era um estudioso, o aprendizado do espanhol não havia sido difícil. Faltava agora conversar com os locais, mas como puxar assunto? De forma que estendia um pouco as conversas nos pedidos aos garçons, quando lhe traziam puré de batatas com costelas de carneiro, tendo o doce de leite como sobremesa. Conversava com os recepcionistas do hotel e perguntara acerca de imóveis para se comprar na cidade, pois viera com a certeza de que ficaria para sempre ali, retirado.

Entrevistara-se com um contador, que ficou de acertar os seus documentos para residência fixa no país, ainda dentro do prazo de três meses permitidos pela imigração. Sempre correto, não queria nada fora das normas e prazos do país que escolhera para viver e que o recebera tão bem. Um tanto curioso e interessado em entrar na cultura uruguaia, sorvia o seu chimarrão, tendo ao lado uma garrafa térmica azul. O vento frio de maio soprava do rio e driblava os edifícios da bela capital uruguaia.

O próximo compromisso de Arioswaldo seria o almoço um pouco mais tarde, lá pelas 17 horas, e a seguir, uma ida a uma apresentação teatral no Solís. Portanto, tinha tempo de sobra para ficar ali, à toa, embaixo da estátua do General Artigas.

Sua atenção fixa nos transeuntes se deteve numa moça que fumava tranquilamente o seu cigarrinho de maconha. Pelo olfato, percebeu-a e teve que considerar que aquilo era muito diferente da sua distante terra, pois a maconha não era liberada no Brasil. Para seu espanto, a moça veio em sua direção e pedindo licença, perguntou se poderia sentar ao seu lado. “Como não?”, pensou, e a seguir assentiu com um meneio de cabeça e olhou mais detidamente a sua interlocutora.

Uma moça que aparentava não ter mais de 20 anos, alta, com uma saia hippie e um lenço na cabeça, que mal cobria os seus cabelos claros e anelados, com volume médio, um cheiro de jaborandi emanando de suas mechas. Uma blusa azul com gola rolê e um sobretudo claro incorporavam o seu figurino, aliado a sandálias também hippies com meias felpudas. “Um belo quadro de se ver”, pensou Arioswaldo, “pena que está impregnada desse cheiro horrível”. Como se adivinhasse o incómodo do idoso, apagou o cigarrinho e o colocou em uma bolsinha a tiracolo. Puxou conversa:

— Então o senhor está à toa admirando as pessoas que passam? Parece estrangeiro.

Arioswaldo assentiu, estendeu a mão direita e cumprimentou, sentindo o contato de mãos delicadas e estranhamente perfumadas.

— Sim, estou na cidade há apenas cinco dias. Conhecendo tudo de novo a cada dia, visitando as atracções turísticas primeiro. Vim do Brasil para ficar. Meu nome é Arioswaldo.

— Muito prazer! Meu nome é Marcela. Gostando da cidade?

— É a primeira vez que viajo para o exterior. Vivia retirado na minha cidadezinha. Uma estância, como se diz por aqui. Tudo é muito novo para mim, mas estou gostando. Acostumando meus olhos a cenários tão belos. – olhou de soslaio e timidamente se questionou se não poderia ser mal interpretado, pois agora percebia que Marcela era bastante bonita – parece que a interlocutora percebeu o grau de timidez, e não deu maior importância ao fato. Ela desejou boas-vindas ao senhor e continuou:

— Não pude deixar de perceber a sua cara quando me viu fumando. Isso o incomoda?

Arioswaldo ficou sem jeito com pergunta tão direta. Um tanto tímido, sorveu mais um gole de chimarrão e fitou a moça, agora de frente:

— Absolutamente. Desculpe-me a senhorita se te deixei com essa impressão e…

— Senhorita? Ah, por favor, não precisa ser tão formal.

— Tá certo. Bom, o cheiro do cigarro me incomoda um pouco, mas não se trata de ajuizar valor ao fato de você fumar. – não sabia até que ponto aquele depoimento era sincero. Estaria mentindo para si mesmo?

— Apaguei o cigarro em respeito a você. – Arioswaldo sentiu-se remoçado ao não ouvir o tão tradicional Senhor que sempre antecedia o seu nome. – Me dê um pouco da erva – e indicou a cuia com o chimarrão.

— Sim, claro – Arioswaldo repassou a cuia e viu a moça sorver um bom gole, afirmando a seguir:

— Como deve saber, tomar chimarrão com alguém é estabelecer uma amizade com esse alguém.

— Sim, sei disso. Ouvi dizer ainda no Brasil.

— Mas como veio parar aqui? Claro que é um prazer para mim estar aqui agora, conversando contigo, mas como se deu essa ideia de vir para cá?

— A história é longa. Acho que a entediaria.

— Pode acreditar que não. – sorriu exibindo os seus dentes perfeitos, ao que melindrou um pouco Arioswaldo, que insistiu em não se alongar na sua história.

— Não sou assassino. Nem ladrão. Nem estuprador e nem foragido da Justiça. Mas não gostaria de contar a minha história.

— Você não tem cara de foragido mesmo. Mas tem cara de uma pessoa bastante inteligente. Apostaria que é professor de Ciências Humanas, algo como Psicologia ou Filosofia.

Arioswaldo tomou um choque. Como a moça adivinhara a sua formação em Filosofia, mesmo tendo se retirado do mundo e vivendo na fazenda, isolado do contato com a maioria dos seus conhecidos?

— A senhorita… digo, você, acertou. Estudei Filosofia. Mas pareço tão óbvio assim?

— Tens cara de pensador. Observei a forma como você estava observando as pessoas que passavam por aqui. Eu inclusive.

Arioswaldo se sentiu invadido. Descoberto. Riu nervosamente e admirado pensou acerca do olho e do olhar, naquela parte do livro de Sartre, onde ele escreve acerca do Ser e do Nada. Retomou a cuia, abriu a garrafa térmica e despejou a água quente, revirando a erva com a bomba metálica. Via-se que estava visivelmente desconcertado.

— Ah, obrigado! Mas se tenho cara de pensador deve ser devido ao fato de ter um semblante meio sorumbático…

— Não… não… não… o senhor, digo, você… tem uma cara de tranquilidade. Parece ter a vida resolvida e isso deu para notar. Parece um sábio.

— Ah, obrigado, mas não chego a tanto.

— E então, qual é a sua filosofia de vida?

— Não tenho uma, mas algumas. O assunto é amplo.

Marcela sorriu, ajeitou as pernas e sentou-se sobre uma delas para encarar o seu interlocutor de frente. Estendeu as mãos e tocou o braço direito de Arioswaldo, sugerindo que poderia confiar nela e que a partir daquele momento ambos já eram amigos.

Jean-Paul Sartre

Arioswaldo enrubesceu, fato que não passou despercebido a Marcela, pigarreou um pouco e voltou a sorver a bomba, se detendo por infindáveis segundos na viscosidade da erva verde e húmida. Retornou, olhando para a bela moça:

— Nada de mais a minha vida. Simples como a de um homem no campo. Lendo, estudando, cuidando dos afazeres da fazenda e cuidando dos bichos. Nada de muito importante.

— Como o senhor lida com a fama?

— Eu não sou afamado, senhorita.

— Não mesmo?

— Mesmo mesmo! – sorriu, um tanto nervoso com a insistência da interlocutora.

Marcela não apertou o interlocutor. Falou de amenidades e perguntou acerca dos primeiros dias de Arioswaldo ali. Foi a deixa para ele tirar de uma velha pasta de couro marrom uma quantidade incrível de folders e informes turísticos. Encontrou refúgio naqueles papéis, até para escapar um pouco do olhar inquiridor da jovem.

Via-se de tudo ali, como pistas futuras para conhecimentos de lugares e atrações turísticas e culturais: um ticket do Museu do Futebol no Estádio Centenário, um folder acerca do tango, um informe do Instituto Uruguaio Argentino, um folder do Ministério do Turismo, um cartão de visitas do Café Bar Tabare, um ticket de visita do Palácio Legislativo juntamente a um livreto e mais um específico acerca da Biblioteca.

Um folder sobre o mate e as suas tradições, um folder sobre o Mirador Panorâmico, um informativo sobre o Carnaval, um livreto sobre os 100 anos do tango La Cumparsita, uma nota fiscal do El Copacabana de 590 pesos com a discrição dos items consumidos: uma cerveja Patricia, uma água mineral sem gás e uma merluza grelhada, uma nota fiscal do Bar Facal, um folder do Museu Casa do Governo e o mapa da cidade.

Viajou nas lembranças daqueles cinco dias, e sugeriu a Marcela caminharem um pouco. Junto às amenidades das conversas, o tempo já passara depressa, sensação que sempre ocorre quando a conversa flui leve, mesmo que o tímido Arioswaldo se mantivera reservado na maior parte do tempo.

Caminharam e passaram pelo pórtico, que é o símbolo do Uruguai, na arquitetura conservada ainda dos tempos de colonização espanhola. Marcela sugeriu que entrassem na Livraria Mais Puro Verso e assim fizeram. No mezanino pediram um café expresso (para ela) e um chocolate quente (para ele). Conversaram animadamente, e Arioswaldo, com a sensação prazerosa do chocolate quente, já percebia que acabara de fazer a sua primeira amiga na cidade, ainda mais que Marcela insistira para que mantivessem o contato.

Arioswaldo pagou 180 pesos e despediu-se da amiga, informando que iria para o hotel descansar um pouco, mas tomou o cuidado de anotar o telefone e o Whatsapp da moça. Sem cerimónias, ela levantou-se e o abraçou fortemente, ao que ele pode sentir o calor quente dos seios em seu peitoral. Desajeitadamente, desenvencilhou-se do abraço e dirigiu-se à escada, tomando o rumo do primeiro pavimento, passando pela porta giratória e ganhando a rua.

Marcela ali ficou um pouco. Passeou pelas prateleiras de literatura latino-americana e investigou centenas de títulos. Deteve-se em títulos de escritores brasileiros publicados por editoras espanholas e uruguaias e enfim encontrou o que procurava. O título “O Filósofo Idiota” e foi ali que se consumou a sua investigação. O romance não era de autoria de Arioswaldo, mas era sobre ele.

Riu, admirada de sua descoberta, ela que era estudante de Letras e escavadora de obras um tanto marginais. Um mundo pequeno, que se deixa estreitar por intermédio de livros. Refletiu que não havia obtido os contatos do filósofo, na sua percepção, nada idiota, e desejou que ele fizesse contato para encontros futuros. Já lera o livro, mas agarrou o exemplar, passou no caixa e o adquiriu.

Marcelo Pereira Rodrigues

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