“O Quarto em forma de bunker” é a continuação do conto da semana passada, “O Beijo“.
Carla possuía cabelos escuros e médios, qualquer maquiagem em tom mais escuro dava a ela uma aparência dark e distante. Silenciosa, perspicaz e observadora, crescera como toda criança de alta classe, apesar de salvaguardada por seu pai que desejava que a criança fosse criança. Lembrava-se até hoje do refúgio na fazenda, onde o pai a fazia montar a cavalo, nadar na cachoeira e até tirar leite das vacas. Era feliz ali. Sua mãe preferia não ir e agendara cursos e mais cursos para a filha, em aulas que iam de piano a ballet, passando pelo cursinho de Inglês Kids e fizera-a apresentar-se como anjo numa celebração católica.
Desde cedo, Carla estranhara aquilo tudo. Julgava os seus coleguinhas e, fato impensado e sem motivo aparente, causou ao jogar uma coleguinha anjo do alto da improvisada escada, num autêntico génio maligno. A coleguinha quebrou o braço, ambulância e coisa e tal, a maior confusão na igreja e, ao mesmo tempo em que a mãe corria para acudir a acidentada e desentendia-se com os pais da mesma, o pai resgatava a sua filha e levava-a embora, escondendo o riso por um gesto tão impensado. Para o bem da menina, ralhou muito, mas ele mesmo sentia que não era convincente. Quando seus pais se encontraram em casa, houve uma reunião de emergência para discutir o erro da filha. Perguntada, fez cara de inocente, do alto dos seus oito anos, e saiu-se com esta: “Queria ver se aquela anja voava!”. Seu pai explodiu numa gargalhada, sua mãe chorou de raiva e brigou com o esposo. Jurema tentou estipular o castigo, mas foi desautorizada pelo esposo, que tinha planos para o fim de semana na fazenda. Brigaram feio. O pai ganhou a queda de braço e, já na sexta à noite, dormiram no campo, para aproveitarem melhor o final de semana. Carla gostava de conversar com os meninos e as meninas filhos dos empregados do lugar, amava brigar de jogar fezes de cavalo e chegou a ponto de, ficando enfezada, colocar uma bola de cocô de cavalo na boca de um menino que, atrevido, ficava-a relando. Ali era feliz, a convivência com o seu pai era amistosa, compreensiva, amável, para além do fato de ele ser o seu pai. Engenheiro talentoso, que herdara uma fortuna de seus pais, Ambrósio era disputado por grandes construtoras do País e já havia prestado serviço em Angola, Benin, Canadá, Estados Unidos, Portugal e Alemanha. Mas mantinha-se simples e sentia-se no paraíso estando na roça com sua filha. Carla pressentia que o casamento dos pais não ia bem. Não que tivessem brigas e discussões, longe disso, pois o jeito de Ambrósio levava-o a não discutir sob nenhuma hipótese. Ele simplesmente saía da discussão. Em momentos críticos, ia embora para dormir em um apartamento funcional que mantinha no centro de BH. Sendo assim, depois de separações parciais, deu-se a separação oficial, com Ambrósio sendo contratado pela Secretaria de Obras do Estado de São Paulo e assumindo missões das mais importantes, sendo uma delas a supervisão das obras do novo estádio do Corinthians, em Itaquera. Carla sentiu o afastamento, as ligações foram ficando mais raras e, sabedora da característica de seu pai de não se envolver e nem se interessar mais pela ex-esposa, passou a compreender que os silêncios cada vez mais frequentes significavam lições, uma das muitas que aprendera com ele, como: “Filha, aprenda uma coisa: não basta dinheiro para se ter uma vida feliz. O importante é buscar um foco e deixar para lá todos os seus bens e conquistas financeiras. Ser feliz com as coisas simples. Respire o ar e sinta como é diferente aqui no campo. Não temos poluição e observe apenas a natureza, os cavalos, bois e galinhas. Elas são o que são, apenas são, e nos propiciam um excelente contato. Um modo gostoso de se viver a vida. Quando eu tinha a sua idade, seu avô me passou isso, trazendo-me para cá sempre que podia. Fez-me virar homem e ensinou-me a ganhar o meu próprio dinheiro. Isso me definiria. Isso me definiu. Fui garçom aos 14 anos e batalhei a minha grana; apenas em épocas especiais ele me proporcionava conforto. Foi uma grande coisa que aprendi. Por favor, não se prenda a seus amiguinhos ricos, instrua-se, viva e se permita viver, busque se divertir e amar as coisas simples. Não deixe que o dinheiro te corrompa”. E assim ele fazia. Não interferia nos excessos da esposa, mas sempre negociara um dinheirinho extra com tarefas e tarefas para que Carla entendesse o significado do trabalho. Na semana, chegava a passar tarefas para a filha: para que ela pudesse usufruir o final de semana, tinha a incumbência de engraxar os seus sapatos, ajudar a empregada a secar as vasilhas, auxiliar a arrumar a mesa de café e almoço e buscar o jornal no portão do condomínio, sempre às oito. E é claro, ensinou-a a dobrar a roupa de cama, tirar o básico da poeira e colocar as roupas sujas na máquina. Para desespero de sua mãe, que achava aquilo tudo uma bobagem, e não eram poucas às vezes em que afirmava: “Nossa filha é a Cinderela, não a Gata Borralheira!”. Carla largou o piano, o ballet e centrou suas forças no Inglês. Com tantas reclamações da mãe, passou a ignorá-la solenemente e a boicotar qualquer tentativa de inseri-la no convívio social da elite de BH. Achava aquilo tudo uma bobagem. Só não encontrou forças para batalhar por duas coisas: queria estar em uma escola estadual de periferia e, já aos 14, ansiava trabalhar distribuindo panfletos. Dissuadida pela mãe, até pela questão legal do Estatuto da Criança e do Adolescente, resignou-se com a gorda caderneta de poupança, mas sem ao menos intentar maiores gastos. Ela mesma pagava a Van Escolar, a mensalidade no colégio e frequentava livrarias, enfurnando-se na leitura como ponto de fuga. Já aos 12, lia filósofos e isso tudo para preocupação da mãe. Platão e o “Mito da Caverna”, aquele mito era tudo aquilo que percebia. Tão atual e tão presente em sua vida: aparência e essência. Jurema era a prova viva disso. Descartes, Kant, Spinoza, até chegar a Nietzsche, onde se reconheceu no personagem do filme “Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos“, com o adolescente que fizera voto de silêncio até conseguir o seu objetivo que era o de se tornar um piloto de caças na aeronáutica. Viu a bandeira do bigodudo no filme e procurou saber quem era Nietzsche, e o bem que ele causara ao personagem, fazendo-o se calar para o mundo. Leu “O Anticristo“, lembrou-se do empurrão que dera na amiguinha fútil vestida de anjo (sim, ela não voava mesmo!), leu “Ecce Homo” e apaixonou-se por “Assim Falava Zaratustra“. Deixara de frequentar a igreja, nem confirmara o batismo pela crisma, para desespero da mãe que insistia. Depois de muitas discussões, se bem que não existe discussão de um só, uma vez que Carla se resignava a ficar calada e tentar esconder o seu sarcasmo pela caretice da mãe. “Olha menina, se você não fizer a crisma te juro que não terá o seu passeio pela Disney. E olha que já tirei até o seu passaporte e negociei com a agência o visto de entrada!”. Carla agradeceu em silêncio. “E olha que não terá a sua festa de debutante. Te juro que não. Não mesmo!”. Carla agradeceu novamente, tudo em silêncio. E depois teve que agradecer e se desculpar, mesmo com o oferecimento da mãe tanto para visitar a Disney quanto para o baile de debutantes; fechou-se a questão de que não queria nem uma coisa nem outra, e, aliás, não queria nada que não fosse ler Nietzsche e antever as aulas com o professor de literatura, redação e filosofia, Gregório. Possuía um amor intelectual pelo professor, enxergava nele uma vontade de gritar ao mundo a estupidez das coisas e via nele características de seu pai. Carla era uma garota comum, não aderiu a tribos e tudo o que descobrira foi por vontade própria. Experimentava e se deixava experimentar. Fumou maconha, mas desistiu na segunda tentativa, por ficar faminta e sonolenta. Experimentou o sexo oral, mas achou aquilo tudo nojento. Buscou na música alternativas para entender o mundo e as coisas e, como sabia inglês, buscava bandas alternativas de rock and roll que, de tão alternativas, buscavam apenas a obscuridade e, em seus shows, havia apenas integrantes de outras bandas, tão obscuras quanto eles. Frequentava alguns desses shows, e bebia compulsivamente. Para desespero da mãe, que se envergonhava da filha metaleira. Jurema tentava entender, mas era tudo em vão. Conversando com Gregório, este a fez maneirar. Sem didatismo e discurso de adulto chato, a fez ver que o consumo excessivo de álcool iria atrapalhar aquilo que ela mais prezava: o seu discernimento intelectual. “Álcool destrói os neurónios, simples assim!”. E Carla maneirou, tentava a todo custo um encontro com Gregório para tomarem um vinho fino, mas o professor sempre tinha um compromisso e apenas se encontravam em livrarias, alguns lançamentos e no último evento social, no vernissage de “Provocações Filosóficas De Um Pensador Atualizado Com As Coisas Do Mundo”. Deixemos o passado e façamos um salto para os dias atuais.


Carla chegou a casa, almoçou rapidamente e, após trocas de poucas palavras com a empregada, foi ao quarto. Trancou a porta. Fechada no cómodo e ensimesmada em si mesma, foi digerir os acontecimentos do último dia. Ágil nos sites de busca de filmes, pôs para baixar o filme indicado e deitou-se, cochilando e rememorando e lembrando e visualizando e pressentindo e se angustiando. Não queria mais pensar no beijo forçado que lhe dera Greg… Na verdade a coisa saíra um pouco de controle: aquela ereção sufocada do professor não tinha nada a ver com a proposta do selinho. Rememorou tantas e tantas mediocridades expostas na noite anterior, durante o lançamento. Triste saber que pessoas perdiam a sua humanidade para se tornarem caricatas delas próprias. Todas tinham causas para defender, revestiam-se disso e refugiavam-se nisso para não perceberem suas vidinhas idiotas, vazias e sem sentido. Apegara-se a Greg, intelectualmente falando, pois ele era diferente e se assemelhava a um alfaiate nesses tempos de ternos prontos e baratos, adquiridos com tanta facilidade. Só percebia que Greg era um enrustido de alguma coisa, não abria nada de sua vida pessoal. Era casado? Tinha filhos? Talvez filhos com a sua idade? Morava onde? Sempre que perguntava essas coisas, o professor saía pela tangente. Um sujeito enigmático, o mínimo que se poderia supor. Agora compartilhara com ele um segredo que não confessara a ninguém. Queria realmente morrer! Ou não! “Será que terei a coragem de me matar?!”. Folheou revistas de psicologia, filosofia e afins. Folheou “Assim Falava Zaratustra” e ao acaso, leu: “Envenenaram a água santa com a sua concupiscência; e ao chamar alegria aos seus torpes sonhos, até envenenaram as palavras. A chama indigna-se quando eles põem ao fogo os seus húmidos corações; o próprio espírito ferve e fumega quando a canalha se abeira do fogo. A fruta mela-se e torna-se enjoativa nas suas mãos; o seu olhar é vento abrasador que seca a árvore de fruto. E mais de um dos que se apartaram da vida, tão somente se apartaram da canalha; que queiram repartir com a canalha a água, a chama e o fruto. E mais de um que se retirou do deserto para lá sofrer a sede com os animais selvagens, fê-lo para não se sentar junto da cisterna em companhia de imundos cameleiros. E mais de um que avançava como exterminador e como saraivada pelos campos de semeadura, só queria pôr o pé na boca da canalha para lhe tapar o gasnete. E o que mais me perturba não era saber que até a vida se encontra necessitada de inimizade, de morte, e de cruzes de mártires; mas tão somente me perguntei um dia, e a pergunta quase me sufocava: Quê? Teria a vida também necessidade da canalha? As fontes envenenadas, os fogos pestilentos, os sonhos maculados, os vermes no pão da vida, são coisas necessárias? Não era o ódio, mas o nojo o que me devorava a vida!”.
Releu. Procurou no dicionário o significado da palavra gasnete. Leu garganta, goela. Ficou satisfeita. Interessante como abria o livro como se fosse um Evangelho de pequenas atitudes. Conhecia a obra de cor, lembrava-se de trechos inteiros. Sua obsessão chegou a ponto de entrar na aula de alemão para compreender melhor os termos onde encontrara dificuldades de tradução. Refletiu: “nojo que me devora a vida!”. Sim, nojo de ter uma mãe tão fútil, materialista e mesquinha. Nojo de amigas que ficavam nos seus celulares o tempo inteiro, mas desconectadas da vida real. Nojo da garota que na noite anterior ficou fotografando, postando, vidrada no virtual e longe de prestar atenção na fala de Greg e na discussão proposta. Greg não era desse mundo. Greg não era desse país. Greg não era dessa cidade. Greg não era dessa época. Apostava que, se tivesse nascido um século antes e vivesse em Paris, viveria, sim, os horrores de duas grandes guerras, mas se deliciaria no Café De Flore, discutindo com Merlau-Ponty, Camus, Simone, Sartre e Picasso. Pobre Greg! Condenado a tentar refletir a canalha! Canalha de indigentes e choro cristão de uma mulher que se culpava pela morte da mãe. Que horror! A salvação para a mãe falecida é não ter que conviver com pessoa tão insuportável! E a outra que expõe o seu câncer, como se o mundo tivesse culpa de que a sua carne estava sendo carcomida pelos vermes? O seu lenço na cabeça é uma chaga exposta, implora por piedade e é uma ressentida. E quem seria aquele homem estranho que parecia perdido no evento? A pobre moça que adora e ama os animais… bastou eu citar o caso em que Nietzsche abraçou-se a um cavalo para a mesma se abrir toda, contar a sua vida em cinco minutos e, da conversa, tudo se resumia a castrações animais, rações, albergues caninos, criminalização das touradas na Espanha, condenação de atos de iniciação cultural na Dinamarca onde jovens matavam golfinhos e muito controle para segurar o choro após essas narrativas. O gay se classifica como gay e negro, sua militância é meio infantil; a bem da verdade, nunca classifiquei os gostos pessoais, sexuais de quem quer que fosse; o que me faz observar as pessoas é a sua diferenciação intelectual, e Greg me preenche nesse quesito. Sua mãe era uma lástima! Como se fosse um banner de superficialidade! E o beijo! Que significado teria tido aquele beijo para Greg? Tomara que nenhum! O coitado ficou todo constrangido, apesar de que eu perderia a minha virgindade com ele. Mas nada que significasse mais que um rompimento de hímen, não quero outro significado que não seja esse.


Viajou nas ideias, nas teorias e na maionese. Viajou deitada e encontrou alento para persistir vivendo. Quem sabe encontraria razões em um mundo sem sentido? Como sempre acontecia, o trecho lido reverberava cada vez mais. Seus pensamentos sobre a canalha presente no lançamento foi fruto dessa associação. Nietzsche teria uma enxaqueca horrível se fosse o Greg. Conviver com imbecis. Bem fazia Schopenhauer que exigia do dono da estalagem que não colocasse ninguém sentado a seu lado nas horas das refeições e quando o seu cachorro Átima, “a alma do mundo”, procedia mal, ralhava com ele xingando-o: “Humano!”. Mundo de merda! O meu mundinho é um mundo de merda! Devo encontrar forças para suportar isso tudo. Não sei como, mas irei encontrar forças. Tenho o meu amigo Nietzsche e agora tenho Greg; quero enlouquecer a sua vida medíocre, quero fazê-lo sair do esquadro e diverti-lo me divertindo também. Não irei morrer. Pelo menos por ora. Quem sabe outro dia? Quem sabe nunca? Vazio. Até a palavra entorpece. Lembrou-se de um pensamento que lera de Emil Cioran: “Só vivo porque posso morrer quando quiser: sem a ideia do suicídio, já teria me matado há muito tempo”.
Como seria perder a virgindade? Doeria? Um hímen! Grande coisa! Um pedacinho de carne e que era a busca de todos os meninos. Meninos! Odiava meninos. Os mela-cuecas que encontrara e suas inseguranças latentes. Precisava de um homem, não de um menino. Prensada em um muro do condomínio em que morava, experimentou o sexo oral, dando e recebendo, mas não se entusiasmou. Meninos! Pessoas mais idiotas! Fechou os olhos e começou a se masturbar, primeiro levemente e depois de modo frenético. Pensou em Greg e brincou, imaginou, sonhou e se satisfez. Sonolenta, deixou-se desfalecer e dormiu, encontrando o silêncio, a paz e a ausência das percepções. Um vazio. Mas gostava desse vazio. O vazio de não pensar, sentir e julgar.
Deixemos Carla entregue a seus sonhos e sono e vamos dar um recorte para Gregório Mendes. Realmente, nossa adolescente intelectual nietzschiana tem razão. Quando adentra a sua casa, Gregório cerra a porta de tal forma que nem a esse humilde narrador é permitido olhares sobre o seu verdadeiro ser: se é casado, se tem filhos, animais de estimação e objetos pessoais. Estranho personagem, só definível nas tratativas sociais.
Jurema Barbosa da Silva crescera como toda menina da alta classe belo-horizontina. Filha de um político carreirista, de presidente de associação de bairro a vereador, de vereador a deputado estadual, daí a federal, assumira a pasta da Secretaria de Cultura em Brasília no governo Sarney e era pessoa influente no meio, crescendo por meio da maçonaria. Notadamente quando o seu pai vivia em Brasília, Jurema, chamada pela mãe e empregada de Ju, perdeu a referência masculina e paterna aos 10 anos. Apesar de carregar o nome da avó, mãe de seu pai. Sua mãe era maníaco-depressiva, apesar de naquele tempo essa tipificação psicológica não ser corrente. Mas ela entendia hoje. Conceição alternava momentos da mais pura euforia e períodos inteiros onde simplesmente não saía da cama, tomava banho, penteava cabelo etc. Jurema cresceu com vergonha. Suas amiguinhas possuíam pais e mães “normais”, nas festinhas de aniversário vivia o misto de alegria e da tristeza, por nem sempre poder apresentar a mãe a suas amigas. Crescera, enfim, escondendo-se. E foi assim que conheceu Ambrósio, que não tinha estigma com o nome e se saía muito bem. Divertido e falante, já estava na faculdade de engenharia da UFMG e era aluno brilhante. Percebeu que a namorada não gostava de ser chamada de Jurema a partir do momento em que, dada a relação séria, disse se chamar Jurema e não Juliana. Ambrósio riu da situação, mas procurou relevar e não deu nenhuma importância. Sua discrição se mostrou quando foi apresentada aos pais dele. A mansão na qual moravam era apenas uma das muitas propriedades da família; ainda tinham duas fazendas, uma chácara e Jurema admirou os gastos espartanos do namorado, que vivia em um quitinete no centro, no inferninho de BH. Perguntado sobre a sua condição financeira, saía-se sempre com essa: “Meus pais têm a grana, me proporcionaram conforto, mas quero ter a dignidade de subir com as minhas próprias pernas”. E ele fazia isso. Antes mesmo de formado, já trabalhava no melhor escritório de engenharia de BH (aí, sim, aceitou o empurrãozinho dos pais, também sob a chancela de um renomado político de Brasília, pai de Jurema, que influenciara). Casaram-se logo depois.
Ambrósio apaixonou-se pelo belo sexo de Jurema, diminutivo Ju, mas como sempre acontece nessas ocasiões, a paixão é o verniz que desgasta com a madeira amor, e o esposo passou a perceber a futilidade e os gastos excêntricos e despropositados da esposa. Ambrósio, preocupado, sugeriu-lhe subtilmente livros, alguns até de etiquetas e, na terapia de casal (exigência dela) assomou-se ao fato de uma gravidez inesperada. Essa gravidez veio colher Ambrósio num momento em que intentava separar-se. Fato novo, e seguiu o resignado engenheiro a ocupar-se mais e mais do trabalho, assinando projetos que mostravam todo o seu talento e, do mesmo jeito que era um sucesso no trabalho, era um fiasco em casa. Nasceu uma bela garotinha que teve o mérito de reunir novamente os pais e familiares. Deram a ela o nome de Carla. Esse bebé deu vida a Ambrósio, que assinara, sim, o seu projeto mais bem acabado. Mas se deu a depressão pós-parto de Jurema, sua angústia e melancolia e sempre a reclamação de que os seus peitos haviam caído. Compreensivo, Ambrósio abraçou a esposa no seu momento ruim. Jurema soergueu-se pelas aparências. Podia sofrer o diabo na sua intimidade, mas quando retornou às atividades sociais, exibia a sua filha como um troféu e comparava-a com outras crianças. E foi assim que Carla cresceu, enojada das futilidades da mãe e em atitudes que em nada denotavam sinceridade. Com meninos e meninas de sua idade, Carla estava enfurnada no meio e incomodou-se a ponto de preocupar-se com um garotinho que desafiava os carros no sinal de trânsito vendendo panos de prato. Seu pai desceu a janela, adquiriu dois pacotes a vinte reais e, quando perguntado pela filha o motivo de aqueles meninos estarem ali, ouviu que era devido ao fato de serem pobres. E percebera o gesto nobre de seu pai, que adquirira o oferecido apenas para ajudar. Essa cena marcou Carla. Havia então um mundo cruel lá fora, um mundo onde as pessoas lutavam para sobreviver, e agora Carla entendia as lições do pai para que trabalhasse pelas suas coisas e que tivesse responsabilidade.
O anúncio da separação foi sucinto e direto: Ambrósio abraçou a filha, disse que iria passar uma temporada em São Paulo e que era para ela respeitar a mãe, pois esta precisava de amor. Carla, no alto dos seus nove anos, amuou. Engoliu em seco, pedindo apenas para que o seu pai não se esquecesse dela, “Que coisa, minha filha! Como hei de esquecer a garotinha que amo mais do que qualquer coisa no mundo? Só preciso que você cuide da sua mãe. Ela precisa muito de você!”. E precisava mesmo. Depois de doses cavalares de Prozac e Lexotan, Jurema encontrou refúgio outra vez nas aparências. Botou silicone, assumiu a presidência de um clube social e passou a gastar desenfreadamente. Fazia as coisas apenas para aparecer. Calada, até que fazia boa figura. Como estava sempre nas festas das socialites de BH, praticava o alpinismo social e enviava garrafas e garrafas de vinho do estrangeiro para colunistas sociais. Poucos caíram nessa esparrela. Agendara todos os compromissos para a sua filha, para se ver longe dela, e, na incongruência de suas vontades, mãe e filha apenas conviviam. Chegada à adolescência, e Jurema já numa briga homérica e cartorial para mudar de nome (no meio das socialites já era conhecida como Brigitte) e Carla apiedada daquilo tudo. “Que merda de importância tem um nome?!” e foi assim que afundou no seu mundo próprio, procurando não questionar e nem cobrar o esquecimento do pai que simplesmente sumira e, sem se fazer de vítima (seu espírito sempre foi altivo desde criança), pensou o seguinte: “Que lição, hein, pai? Já terá criado outra família? Pensa que sou forte o bastante para não me importar mais com o meu pai?!”), mas fato engraçado ocorria: mesmo com poucos telefonemas, quando se falavam a conversa ia por rumos dos mais variados. Carla contava-lhe tudo primeiramente, até a sua primeira menstruação. Falavam-se por telefone, mas viam-se pouco. Raras vezes. Enquanto isso, Brigitte (até que enfim conseguiu trocar no cartório) seguia nas suas tratativas sociais e comprando e aparecendo e esquecendo-se apenas de ser mãe. Mamãe e filha se encontravam nesse distanciamento. Foi o que bastou para Carla romper também com as exigências tradicionais: crisma, festa de debutante, ida à Disney. Sinceramente, não precisava de nada disso para ser feliz.
Fazendo um recorte para o presente, tomando um café no Restaurante Califórnia do BH Shopping, Brigitte está ao telefone com a editora de uma revista da cidade de Nova Lima, quase ali ao lado. Pergunta:
— Será que daria para você me enviar as fotos minhas que irão sair na edição? Gosto de dar uma olhadinha antes.
— Sim, me passe o seu e-mail – responde a interlocutora.
— Tem como informar que fui a Buenos Aires e que estive no Café Tortoni?
— Na verdade, pensamos nas publicações das fotos apenas. Inerentes ao evento.
— Mas como irei aparecer sem nenhuma informação relevante?
Do outro lado da linha, a editora segurou para não mandar a madame à puta que a pariu! Tinha que aguentar cada uma! Pediu o e-mail e ficou de enviar as fotos. Brigitte informou também o Whatsapp e pediu envio rápido. Desligou. Sentada ali tomando um cappuccino, iria se dirigir a CVC para programar sua próxima viagem. Paris. Viu que fora melhor aceita no grupo de socialites quando dissera ter viajado a Miami e Buenos Aires. Paris seria a consagração. Tiraria uma foto na Torre Eiffel e faria um quadro ou um banner. Passearia de barco pelo Sena. Buscava um sentido e significado para a vida, sofria as hostilidades de uma filha esquisita e que a odiava, por mais que tentasse disfarçar. Sopesou a situação, estava com fome e chamou o garçom, pedindo um biscoito de queijo. Refletiu sobre as calorias, se engordaria, mas estava numa situação complicada: sentia fome. Sua dieta era rígida, seguia receitas mirabolantes de saladas, massa zero e carne branca. Academia era insuportável! Caminhada nem pensar! Comeu metade do biscoito. Pagou e foi à agência, certificando-se dos mínimos detalhes, para que permanecesse em uma bolha enquanto estivesse na capital francesa. Adquiriu um pacote de seis dias, com traslado do aeroporto ao hotel e vice-versa, guias de city tour para todos os dias, exigências de que teriam que visitar a Torre Eiffel, ao que a atendente a tranquilizou, afirmando: “Ir a Paris e não visitar a Torre Eiffel é o mesmo que ir a Aparecida do Norte e não visitar a Basílica”. Brigitte certificou-se da quantidade de euros a levar, teve a informação de que o seu gasto diário poderia variar de 30 a 150 euros, dependendo do estilo de vida, ao que ela respondeu que exigia apenas do bom e do melhor. Levaria o seu cartão internacional e dinheiro não seria problema. Só uma questão fez Brigitte refletir e sentir também um pouco de solidão. Como estava fora de questão aventar uma viagem com sua filha, ao ser perguntada se iria sozinha ou acompanhada, respondeu só. O som dessa palavra, “só”, ressoou e ficou no inconsciente. Refletiria sobre ela momentos mais tarde, quando, estacionada dentro do automóvel, chorou copiosamente ao perceber que, fora o clube das socialites e cada qual preocupada com o seu próprio mundo, não tinha ninguém. Fora taxada de egoísta, fria, fútil, e por mais que não pensasse nessas coisas, doía ser apenas aparência e não se sentir realmente feliz. Vivia de aparência. Vivia de ilusão. No momento de dor, pensou no professor de sua filha que lançara o livro na noite anterior. Pobretão, mas que falava coisas com um significado diferente. Palavras como filosofia, auto-conhecimento, reflexão, postura, amor, enfim, foram tantas palavras bonitas e ditas por um pobre diabo que carregava para vender caixas de seus próprios livros. Pensou em sua filha. Por mais que tentasse uma aproximação, era rechaçada e tudo o mais se perdia em vãs tentativas diplomáticas de relacionamento. Vazio. Sentia-se vazia e completamente só. Recebeu uma ligação e resolveu não atender. Era coisa chique não estar disponível o tempo inteiro, fazer-se de difícil. Retornaria dias depois, afirmando que estava muito ocupada com os preparativos para a viagem a Paris. Pensou na possibilidade de conversar com o pobretão do professor de sua filha, tomar umas aulas com ele, quem sabe? Para compreender melhor o mundo e as coisas. Ir além e buscar o significado das palavras filosofia, conhecimento, auto-conhecimento, reflexão, angústia, amor, paixão, postura, ética, enfim, estava resolvido! Compraria o tempo, as horas e o conhecimento de Gregório. E, de modo safado, pensou no professor como um belo caso para consumação, um sexo sem compromissos, pois, Valha-me Deus, ser notada em público com tão pobre professor não pegaria bem. Pediria o contato à sua filha. Para antes ou depois da viagem? Tocou para casa.
Brigitte despachou a empregada, certificou-se das tarefas prontas e foi bater no quarto de sua filha. Acordada pelos batimentos leves de sua mãe, Carla acordou, pediu um tempinho para abrir a porta, foi ao banheiro e jogou água no rosto. Constrangida, sentiu-se suja no ventre e lavando as mãos, jogou um perfume para disfarçar o cheiro de sua doce e amorosa sujeira. Abriu a porta.
— Mãe! O que quer?
— Carla, minha filhinha! Marquei minha viagem a Paris. Estou tão feliz! Posso entrar? – nem esperou a resposta e se sentou no sofá em frente à cama.
— Legal, mãe! Vai quando? – Carla sentou-se na cabeceira da cama, jogando uma coberta sobre as pernas.
— Daqui a vinte dias. Nem cogitei de te incluir, sei das suas aulas e do fato de que não gosta de viajar comigo.
— Mãe, por favor! Não seja dramática! Só não gosto de viajar! Só isso.
Brigitte sorriu, abriu os braços e levantando-se, abraçou a filha. Sentiu um cheiro forte de perfume. Voltou ao sofá e continuou:
— Sabe filha? Acho que depois dessa viagem irei me conhecer melhor. Não sei o porquê, mas sinto isso.
— Que bom para você!
— E queria trocar uma ideia contigo. Saber a sua opinião.
— Fale.
— Sabe aquele seu professor? Gostei da fala dele. Queria conversar com ele, ter umas aulas com ele. O que você acha?
— Greg não tem tempo livre. Acho que ele não irá se interessar.
— Mesmo eu pagando ele?
— Mãe, nem todas as coisas são compradas. Greg é muito íntegro.
— Greg? Já tem essa intimidade com ele?
— Sim, tenho! Acho que sou apenas eu que o chama assim. Nós somos amigos, mãe! Eu o conheço um pouquinho.
— Amigos como?
— Amigos! Amigos como pessoas que se gostam.
— Minha filha, ele tem idade para ser seu pai.
— Sim, sei disso. Mas não é. E não me venha com essa teoria de figura paterna – se irritou.
A mãe percebeu a irritação, irritou-se também, mas se controlou, a ponto de propor convidar Gregório para um café em casa.
— Mãe, o que a senhora quer do Greg?
— Ouvi-lo falar. Só isso. Ele fala coisas bonitas, interessantes.
— Mãe, assista um vídeo no Youtube com um café filosófico.
— Mas é diferente, filha!
— Sim, sei que é diferente! Mas está fora de cogitação eu convidar o Greg para vir aqui em casa. Não quero vínculos.
— Tá bom! Mas me dê um contato dele, pelo menos.
Carla pegou o livro de Greg, sacudiu-o e entregou-o à mãe, dizendo:
— Mãe, está tudo aqui. As ideias dele. O modo de pensar e de viver dele. Talvez ele tenha escrito por isso mesmo. Para se ver livre de conversas com pessoas. Ele fala através de seus escritos.
— Carlinha, minha querida! Você sabe que eu não tenho tempo para ler. Me dá sono. Eu gosto é de conversar, entende?
Carla estava bastante irritada. E cansada. Resignou-se:
— Tá bom, mãe! O contato dele está na ficha catalográfica.
— Ficha o quê? Onde?
Carla levantou-se, pegou uma caneta verde destaca texto, dirigiu-se à mãe e destacou o e-mail de Gregório na segunda página do “Provocações Filosóficas De Um Pensador Atualizado Com As Coisas do Mundo”. Não quis passar o telefone; sentiu-se leve e divertida e imaginou como seria a conversa entre sua mãe e Greg. Sorriu e abraçou a mãe, que correspondeu ao gesto. Informou que iria ver um filme, passou antes na cozinha e preparou um misto-quente, retornou ao quarto e, fechando a porta, lembrou-se do vazio, do absurdo da existência e da alegria em suportar cada dia. Suportar tudo isso! Sabia que seria maldade, mas queria ser uma mosca para assistir a conversa entre sua mãe e Greg, se esse estivesse disposto a ouvi-la.
Assistiu “Beleza Americana“. Carla refletiu sobre muitas coisas. Por que Greg lhe havia sugerido este filme? Seria ele o homem de 42 anos que estava enfastiado da vida e que decidira chutar o pau da barraca? Será que Greg era casado e estava num casamento falido? Seria ela, Carla, o fetiche da ninfetinha desejado pelo personagem principal? Não, sabia que não! O personagem militar, todo rígido em sua conduta de vida, representaria os ditames dos bons costumes? Sucesso, poder e conquistas, desejados pela corretora de imóveis, esposa do personagem frustrado, poderia representar bem a sua mãe? Ela refletiu sobre a banalidade da vida da filha adolescente de Lester Burnham. Um viciado que filmava tudo e que era filho do militar conservador. Que droga de vida! Conversaria depois com Greg sobre este filme!