Este é a continuação do conto “Estrangeirismo“.
Seria muito difícil Márcia não se tornar a pessoa que era. Ativista feminista a partir de uma vida tão sacrificada e nojenta, na parte em que a figura masculina sempre exercia o poder com mãos de ferro, sobre a mãe e sobre ela mesma. Crescera no ambiente truculento da família Braga, com o mantenedor da casa xingando e gritando o tempo todo. Traumatizara-se com os gritos abafados da mãe, num quarto fechado de um apartamento classe média e, no dia seguinte, quando percebeu o olho roxo da mãe, compreendera o ocorrido. Sua mãe tentara disfarçar, com óculos escuros e a caminho de levá-la à escola, afirmou que batera com a face na porta do guarda-roupa. Silêncio abafado e na lembrança de Márcia o gosto acre na boca, com ânsia de vómito. Amava a mãe, só tinha certeza disso. Seus bracinhos pequenos a confortavam e aliavam-se a silêncios cada vez mais compartilhados.
O pai, monstro alcoólatra, abusara da mãe, do cigarro, da bebida e da filha. Para além do usual carinho, quando se sentava em seu colo, não tinha ainda a capacidade para entender reações estranhas, como um volume que crescia na calça do pai e aquele colo quente fazia-a rebolar, mesmo sem entender o que estava se passando. 9 anos. 10 anos. Teria já consciência? Como se lembrar daquele período? A sexualidade em seu corpo desperta através do ódio e da descoberta. Sensações. Não podia confidenciar à mãe, não queria que ela fosse surrada, melhor seria calar-se e, afinal, ela não sabia mesmo o que estava acontecendo. O que estava acontecendo e o que sentia. Seu pai, inconsequente, criava situações para que ficassem a sós com mais frequência e ia manipulando a descoberta e o desejo, deturpando as vontades da menina que não sabia ao certo o que estava acontecendo.
— Quer um pirulito, minha filha? Quer um pirulito?
— Quero, papai.
— Senta no meu colo, vou colocar na sua boca. Gosta de uva?
— Sim, papai.
Após o pai tirar o plástico do pirulito, deu para Márcia chupar. O volume crescia em sua calça.
(Cenas sensíveis – deixando à imaginação do leitor(a))
Anos se passaram e esse segredo foi solenemente guardado. Arlindo sairia de casa seis anos depois. Sumira, largara o emprego e não deixou contato algum. Sua mãe chorara demais e sentia a perda, sentia a falta do ambiente opressor, pois fora feita escrava de um amor doentio e possessivo. Falava sempre para as comadres que Arlindo possuía muitos defeitos, mas que era carinhoso demais com a filha e que colocava tudo o que havia de melhor em casa. A adolescência de Márcia foi problemática. A partir do momento em que se relacionou com meninos de sua idade, tudo ia bem até o cenário de quartos, lugares à meia-luz, pressentimento de volumes que cresciam nas calças dos garotos na hora dos beijos e quando fechava os olhos para consumar a troca de saliva, empurrava os meninos e ficava histérica. Via o seu pai. Sentia o seu pai. “Nunca mais na vida colocarei um pau dentro da minha boca!”. Sentia-se violentada com os garotos que insistiam; foi estuprada por um deles que imaginou estar fazendo um bem para a garota, curando-a quem sabe de um trauma. Estupro. Foi vítima de um estupro. Dentro de si, crescia uma raiva por não conseguir verbalizar agressões. Vivia calada. Resignada. E agora era cúmplice de sua mãe que sofrera todo tipo de agressão durante o convívio com Arlindo. Márcia engasgava-se, irritava-se, sofria. Mas entendia que tinha que ir além, tinha que superar essa fase e entendia que o passado deveria ser enterrado. Aluna brilhante e perspicaz, foi admitida no vestibular de Odontologia e passou a socializar-se mais, bebendo, fumando maconha, lendo Filosofia e Psicologia e, quando já atendia como dentista, recebeu como paciente um escritor filósofo iniciante, que atendia pelo nome de Gregório. Evitava contatos maiores com seus clientes, mas com ele foi diferente. Não se lembra de como o assunto recaiu sobre Filosofia; o certo é que estavam conversando havia alguns dias e semanas num café da Leitura do Shopping Cidade e, aos poucos, Márcia viu crescer um sentimento de afeição. Como anulara as intenções de se abrir com uma figura masculina, sabia-se segura, mas há coisas improváveis nas relações e não há razões que impeçam o desejo de manifestar. Mais sentia que refletia. Mais sentia do que se lembrava. Ria com Gregório. Sentia-se enamorada com ele. Seu parceiro parecia não dar conta. Gregório era doce, meigo, atencioso. Não tinha pressa. Não abraçava apertando-a contra si. Não se impunha. Tinha um hálito doce, quente, chamativo. Deu a entender de seu interesse por ele. Gregório não estranhou. Não se impôs, buscando primeiro pistas sobre o repentino interesse da amiga. Seria uma aventura apenas? Inteligente, sabia das diferenças entre amor e paixão, falava sempre que o amor é a madeira robusta enquanto a paixão é apenas o verniz que cobre essa madeira. Filosofou sobre o mundo das ideias de Platão e o mundo imperfeito das formas, elencou a razão como modo seguro de se viver e, dentre tantas e tantas teorias psicanalíticas compartilhadas com Márcia, riu da situação ao estar com ela no apartamento de um tio dela que morava no Rio de Janeiro e que deixava as chaves com a sobrinha. Isso depois de namorarem de mãozinhas dadas passeando pelos points de BH, indo a cinemas, teatros, livrarias e até ao Jardim Zoológico.

Márcia convidou Gregório para entrar. Acendeu a luz da sala e, pedindo para que ele aguardasse no sofá, foi à geladeira e abriu um vinho. Trouxe duas taças, serviu e acendeu algumas velas aromáticas. Testou a luz ambiente apagando a lâmpada. O semblante de Gregório estava nublado, bem disfarçado. Sentia a sua voz, ousava beijá-lo e abraçá-lo e sentia sua presença de forma íntegra. Duas taças de vinho depois, encaminharam-se para o quarto e beijaram-se com sofreguidão. Era inverno na capital belorizontina, mas ambos estavam aquecidos naquela bolha de amor. Tira-se cachecol, calça, blusa, sutiã, cueca, calcinha, meias, abraçaram-se com volúpia e, antes mesmo da penetração de Gregório, que a deitou na cama, Márcia entrou em transe. Não um transe enamorado, de cópula. Mas um transe traumático e afastando Gregório com rispidez, ordenou que ele fosse embora. Tremia convulsivamente. Gregório procurou ficar calmo, mesmo estando apavorado. Com muito custo, calava a boca da parceira, que tentava gritar.
— Calma, vou vestir a minha roupa, não aconteceu nada. Por favor, controle-se.
— Sai, sai, sai – disse, descontrolada.
— Sim, estou na sala.
— Sai.
Gregório saiu. Recompôs-se. Precisava ainda colher as meias e o blazer no quarto, mas aguardaria. Aguçou o ouvido e percebeu que Márcia chorava compulsivamente. “O que será que eu fiz? Será que disse alguma coisa errada?”. Por mais racional que fosse, estava ansioso. Minutos transcorriam e Márcia não dava sinal. Aproximou-se da porta e pressentiu o que estava acontecendo. O choro foi ficando mais controlado. Ficou na dúvida se batia na porta ou não. Esperou.
Márcia tentava se controlar. Outra vez! Acontecera outra vez! A voz meiga de Gregório, seu jeito sereno e doce indicava boa aproximação. Gostar de um menino. Gostar de um homem. Para justificar o seu corpo bem definido e gostoso que chamava a atenção de todos do sexo masculino. Doce. Meigo. Sereno. Hálito doce. Mas na iminência do contato sexual, aquela ereção era desproporcional às características elencadas. Não conseguia beijar de olho aberto. Não tinha essa arte e especificidade ainda. E quando o beijou e sentiu o pau duro, veio à mente o rosto de seu pai. O cheiro de seu pai. “Quer chupar uma coisa diferente, minha filhinha?” Fantasmas que habitavam a sua existência e pareciam a perseguir para onde quer que fosse. Maldito pai! Culpava-se, cobrando-se o fato de não ter tido forças para reagir enquanto era tempo. Simplesmente não ficar no colo do seu pai. Nunca. Colocar o pénis flácido e sujo dele na boca, sentia-se nojenta, covarde e suja. E o que dizer do gosto de urina?! Traíra sua mãe. Traíra a si mesmo. E naquele momento, como revelação de seu carácter, perguntou-se se era safada e putinha desde a sua tenra idade? “Devo ser uma maldita piranha chupadora de pau!”. Depois de algum tempo, amaldiçoando-se pela covardia ao longo do tempo de sua formação, abriu a porta e deu de cara com Gregório, de pé e despistando do fato de que estava à porta, escutando. Márcia acendeu a luz, abraçou o namorado e quando este quis conversar, pediu:
— Abrace-me. E não fale nada, por favor!
Gregório respeitou.
Esse foi um dos episódios da descoberta da sexualidade em Márcia. Precisava de afeto. De doçura. De atenção. Tudo encaminhava bem com Gregório, mas quando do volume exposto na calça, remetia a seu pai e consentiu com o epíteto “lésbica” para resolver-se nessa área. Com a primeira namorada que teve, a comprovação do amor leve até o final, nada brusco e quente e forte de antes. Nada que evocasse a presença do pai. Doçura. Meiguice. Cumplicidade. Passou a amar a namorada. Passou a amar todas as mulheres. Reabilitou-se com a sua mãe amando-a ainda mais e incondicionalmente. Sentia-se expiada, justificada, sem remorsos. Seu ato de conversão se deu com a compreensão de que fora tanto vítima quanto sua mãe. Ambas foram violentadas pelo mesmo canalha, “que queime nos quintos dos Infernos”. Deu-se ali o seu pacto de amor a todas as mulheres do mundo, notadamente a sua mãe e à sua namorada, Taís. A relação com Gregório voltara alguns passos, após uma extração de siso, leituras compartilhadas que iam rareando e relação meramente protocolar; observaram que não tinham tanta coisa assim em comum e a coisa foi arrefecendo, arrefecendo. Márcia só o fez prometer que a convidaria quando do lançamento do seu primeiro livro.
Façamos um recorte e atualizemos a trajetória de Márcia. Estava naquele momento, com a meiga Taís, numa reunião que definiria a Parada do Orgulho Gay na Savassi, auxiliando na programação cultural do evento, notadamente das oficinas e palestras. Foi ao lançamento de Gregório Mendes exatamente para especular com ele se gostaria de ser um dos preletores. Gregório não disse nem que sim nem que não, preocupou-se apenas em sondar o ambiente e, afirmando não ter nada contra, sentenciou: “Márcia, vou e faço com o maior prazer. Mas desde que seja para uma sala seleta, bem, pode ter até muita gente, mas prefiro um auditório e, de jeito nenhum, ouça bem, de jeito nenhum subirei num caminhão para fazer pronunciamento”.
“Machão enrustido!”, pensou a ativista. Mesmo assim, ponderou a convocatória. Mesmo não entrando em detalhes sobre a sua vida sexual após o traumático encontro entre ambos, lembrava-se dos conhecimentos de Gregório sobre Eros, sobre o amor homossexual na Antiga Grécia e, de muitos defeitos que Gregório poderia ter (o principal deles é ser homem) sabia que ele era um poço de tolerância e entendimento acerca dos sentimentos dos outros. E o que arrematou a admiração completa de Márcia foi um artigo meio panfletário, escrito por Gregório, que foi publicado no O Vigilante!
O ódio à vagina
Gregório Mendes (GM)
A religião possui um ódio à vagina. Pobre vagina! Explico: há muito saí do armário em relação à religião e, mesmo trabalhando em uma escola com viés católico, pratico a minha descrença. Óbvio que, professando aulas, não desejo influenciar meus alunos com os meus pontos de vista pessoais. Conversando com um amigo, certa vez, esclareci que o meu método de professar o ateísmo era a indiferença. Seguindo o conselho do filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), que pregava que só devemos ter como inimigas pessoas ou instituições que estivessem no nosso nível ou acima dele. Simples assim!
GM não teve nenhuma decepção religiosa, nada disso! Simplesmente nunca acreditei. Isso desde os 9 anos de idade. Que isso não soe como ofensa a quem quer que seja. De uns tempos para cá, muitos acreditam que foi o fato de ter cursado Filosofia que me fez descrente. Sinto muito informar: nada disso! Já tinha minhas convicções bem antes de ter entrado para a UFMG. Hoje, o que posso afirmar categoricamente é que o estudo filosófico e científico sério não combina com uma crença religiosa. Mas nem por isso deixei de estudar a fundo as religiões, lendo o Velho e o Novo Testamento, a Torá Judaica, alguns trechos do Corão etc. Quem também fez isso foi o cientista geneticista Richard Dawkins. Ele retirou trechos do Velho Testamento que comprovam por A+B que Deus era um sanguinário de mão cheia. E ali já aparece a pior forma de conceber uma religião: se as mulheres de hoje lutam e desfraldam a bandeira da igualdade (Movimento Feminista), como podem fechar os olhos para séculos e séculos de discriminação descarada que as tinham apenas como um ser inferior ao homem? Onde está isso? Nas Sagradas Escrituras! Um exemplo contado por Dawkins e que irei tentar transpor aqui, sem descrever a passagem: Deus envia dois anjos para avisar Ló que a cidade onde ele morava, Sodoma e Gomorra, seria destruída com enxofre. Ao perceberem que Ló está com duas visitas (jovens e apetitosos), os seus vizinhos querem por que querem sodomizá-los. Ló faz o possível para proteger estes dois indivíduos e apela então para que eles se satisfaçam com as suas duas filhas, virgens ainda. E isso se dá: as duas moças são violentadas, brutalizadas e, no dia seguinte, estão entre a vida e a morte. Afinal, a mulher era um ser inferior e quase um objeto nesses tempos. Enojo-me ao ler esta passagem, tanto no Velho Testamento quanto no livro Deus, Um Delírio, de Dawkins.
Recentemente, o mundo perdeu um de seus intelectuais mais renomados: o jornalista e escritor inglês (e por que não dizer filósofo?) Christopher Hitchens. O cara é muito bom! O programa de TV Milénio, da Globonews, reprisou uma entrevista muito boa dele (de 2007) em que o intelectual alude ao ódio que a religião tem da vagina. Citando heróis e divindades religiosas, citou brilhantemente que o herói grego Perseu nasceu de uma virgem, que foi fecundada pelo Deus grego Zeus que veio disfarçado para seduzir a beldade, mãe do futuro herói. Citou o caso de Buda, que foi gerado através de um corte lateral que não a vagina, e o caso mais clássico é o de Jesus de Nazaré, fecundado pelo Divino Espírito Santo. Não concebo como a religião pode renegar um ato tão sublime como o de um feto se transformando em bebê pelo ventre da mulher, a única divindade que tem o poder de dar a vida (óbvio!). Não consigo compreender como as mulheres aceitam tranquilamente essa discriminação de até hoje serem “seres inferiores” aos homens. Exemplos clássicos: por que a mulher não pode celebrar missas? Por que na maçonaria as mulheres são apenas cunhadas e nunca irmãs? Por que no Líbano a mulher adúltera pode ser apedrejada até a morte pelo marido? Vocês sabiam que na Arábia Saudita as mulheres não podem dirigir? A Arábia é a teocracia (mistura de religião e política), assim como o Irã dos aiatolás.
Num romance popular, O Código da Vinci, o escritor Dan Brown recuperou a importância de Maria Madalena (e por que não, de todas as mulheres?). Se Jesus foi um sujeito admirável (e reconheço isso pela sua figura apenas histórica, não messiânica) certamente teve ao seu lado uma discípula que era mais sensível e intuitiva do que um bando de maltrapilhos pescadores como Pedro, João e outros. E ironia do destino, Dan Brown só alcançou sucesso com este romance graças à sua esposa Blythe, historiadora de arte e que catalogou para ele a fundamentação histórica do enredo. Será que Dan Brown, inconscientemente, foi machista também? Especulo sobre isso, pois as melhores passagens do livro são exatamente as descrições fundamentadas acerca de arte publicada no livro. Não seria conveniente dar a co-autoria à sua esposa? Mas Dan Brown teve o mérito de colocar a mulher na expressão do “Sagrado Feminino”.
Concordo! Realmente, a mulher é o mistério, a excelência, o ser que dá a vida. Inteligentes, com um sentido a mais que nós (homens), o sagrado que apresenta também a vagina, que, ligada ao cérebro, dá o aspecto de uma mulher verdadeira e excepcional. Nisso parecem concordar Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Brown, eu e muitos outros.
Sem querer professar nada, nem doutrinar ninguém, indico a todos pensarem com suas próprias cabeças. A razão científica e filosófica deve ser sempre exaltada. Procurem conhecimentos em pensadores tais Charles Darwin, Nietzsche, Simone de Beauvoir, Sartre, Galileu Galilei, Leonardo da Vinci, Descartes, Hannah Arendt, Sigmund Freud, Schopenhauer e os citados acima. Há muita gente boa pensando o mundo. Conclamo a uma exaltação ao “Sagrado Feminino”, essas excepcionais mulheres que nos deixam em segundo plano…


Mesmo convivendo com ele num período breve, sentira a feminilidade no filósofo. Na reunião, elencou:
— Tudo bem os adereços, a purpurina e as fantasias, os desfiles, mas desejaria mais que isso. Discussões, mesas-redondas, palestras, oficinas, chamando intelectuais dos mais variados tipos e tendo, como tema comum, a tolerância e a compreensão entre os géneros.
Como sempre acontece nessas reuniões, muita conversa fora e pouca decisão prática. Márcia, de forma arrogante, puxou pelo braço Taís, não percebendo que exercia, assim, o controle sobre a mesma e saiu maldizendo ter que conviver com pessoas tão despreparadas. Não iria conseguir emplacar Gregório para uma palestra sobre Eros e o lance hermafrodita na Mitologia Grega.
Luísa continuava postando, desenvolvendo uma cegueira admirável, pois, na ânsia de postar, não tinha tempo para interagir com mais ninguém, a não ser os amigos australianos, canadenses e ingleses. Tinha criado uma polémica infernal no dia do lançamento, com os posts absurdos das expiações alheias, mas, no meio da tanta coisa ruim, pelo menos promovera bastante o livro do Gregório. A reunião com os pais no colégio fora por causa disso. O pai não fora (estava numa reunião de negócios), mas a mãe o representou acreditando não ser possível desconectar a filha, falara assim para a diretora e supervisora:
— Desde que essa menina se entende por gente, é essa coisa de rede social o tempo todo. É o oxigénio dela.
A psicopedagoga interveio:
— Senhora, preciso de uma aliada, não uma comparsa. Desculpe-me a intromissão, queremos o bem para Luísa, mas a coisa está saindo do controle.
— O que quer que eu faça?
— Moderação, é tudo o que pedimos. Na escola ela tem que obedecer à nossa autoridade, sinto muito dizer. Nas aulas, ocorrem muitas discussões a partir das postagens de sua filha. Parece que ontem ela se superou filmando uma senhora sofredora com cancro e fez um estrago…
— Tá, vi essa postagem. Mas não achei nada demais!
— Então a senhora está de acordo? – interveio a diretora.
— Plenamente. O que isso tem de errado?
— Tudo – tornou a psicopedagoga.
Virando-se para Luísa, indagou:
— Por que fez isso?
— Isso o quê?
— Não se faça de sonsa…
Foi a vez de a mãe intervir, esclarecendo que não permitiria que sua filha fosse destratada em sua presença. A diretora acalmou os ânimos, tornou a perguntar à garota, com tom de voz ameno e sem ironia. Luísa respondeu:
— Aquela vaca…
— Alto lá – pediu a psicopedagoga.
— Aquela senhora estava lá toda chorosa. Pobre coitada! Querendo fazer o mundo entender que ela era uma vítima por conta de um maldito cancro. Ela, naquela expiação pública, achando que era a única a sofrer no mundo, querendo chamar a atenção. Dei a ela o que ela deseja: publicidade. E gratuita. E ademais…
— Espera aí – interveio novamente a diretora. Então você não se condói do sofrimento dela?
— Com todo o respeito, senhora, mas há milhares e milhares de pessoas morrendo de fome na Somália, na Etiópia, na Bolívia. Há crianças sendo usadas pelos exércitos do Estado Islâmico, há crianças iraquianas que podem se explodir a qualquer segundo e, aqui mesmo no Brasil, há milhares de pessoas abaixo da linha de pobreza. Sinceramente! Vem uma vaca… digo, senhora, falar da merda de um cancro…
— Mocinha – interveio a psicopedagoga.
E dirigindo-se à mãe, perguntou.
— Posso discordar de sua filha?
— À vontade – respondeu a mãe.
— Devo admitir que você tem uma excelente percepção da geopolítica mundial. E consciência cidadã e cívica também, isso é bastante admirável, mas, veja bem… nessa situação específica, você foi a autora de um mal entendido. Gigantesco. Com os seus atos, não salvou nenhuma criança etíope da fome, mas causou estrago com a senhora Deborah. E não irei admitir você chamá-la de vaca. Ela é um ser humano de carne e osso.
— Vacas também são animais de carne e osso – atalhou a superconectada.
— Alto lá, mocinha! Sem piadinhas – avisou a diretora.
— Mas que a vaca é um animal de carne e osso, lá isso é – observou a mãe.
E a reunião prosseguiu nesse tom, com muita enrolação e pouca solução. Diretora e psicopedagoga ficaram com a sensação de tempo perdido e Luísa e sua mãe conversaram até chegar em casa. Mas nada que fosse substancial ou que apontasse uma mudança de rota. A mãe sabia que a babá eletrónica era eficaz para controlar e administrar o tempo de sua vida.
Outra vez trancada no quarto, Carla avaliou o seu desequilíbrio emocional. Estava imitando sem querer Nietzsche e os seus desvarios públicos. Abraçara o cavalo duas vezes, em dois dias seguidos: pedindo o beijo de Greg e chorando nos braços da mãe no BH Shopping. Estava bastante deprimida e desequilibrada. Precisava recorrer ao seu amigo. Abriu ao acaso e leu: “‘Para os puros tudo é puro’. – Assim falava o povo. – Mas eu vos digo: para os porcos tudo é porco! Por isso os fanáticos e os que curvam a cerviz, que também têm o coração inclinado, predicam desta forma: ‘O próprio mundo é um monstro lamacento’! Porque todos esses têm o espírito sujo, especialmente os que se não dão paz nem sossego enquanto não veem o mundo por detrás: são os crentes no mundo posterior! A esses lhes digo eu na cara, conquanto não soe muito bem: o mundo parece-se com o homem por ter também traseiro: isto é muita verdade! Há no mundo muita lama: isto é uma verdade! Mas nem por isso o mundo é um monstro lamacento! É sensato haver no mundo muitas coisas que cheirem mal: o próprio asco cria asas e forças que pressentem mananciais! Até nos melhores há qualquer coisa repugnante, até o melhor é coisa que se deve superar! Ó! Meus irmãos! É sensato haver muita lama no mundo!”.
Buscou no dicionário o significado de cerviz. Leu: “região posterior do pescoço, cachaço, nuca”. Pôs-se a refletir sobre a lama, os melhores, os puros e os porcos. Sim, havia muita lama no mundo. Até hoje, o mundo sempre muito enlameado. Todos enlameados. Ela com a sua depressão crónica. Sua mãe com os seus delirantes sonhos de consumo e com os preparativos para a viagem a Paris. Greg enlameado dando aulas para adolescentes dementes ao invés de estudar e escrever e publicar para um público mais ampliado, que o entendesse. Lembrou-se da noite chuvosa do lançamento e lembrou-se que, em vida, Friedrich Nietzsche fora um escritor pouco reconhecido e imaginou que, desde a sua época, a massa ignara não estava pronta bastante para ouvir os seus conselhos. Tipificou os presentes no dia do evento: cada um parecia mais demente que o outro, todos representando mentirosamente e acreditando estarem a salvo. Idiotas! Ninguém estava a salvo! Riu, foi maledicente, colocou um CD dos Metallica para ouvir e confortou-se, dizendo para si mesma que passaria despercebida nos próximos dias. Evitaria surtos e a abraçar cavalos. Não queria constranger ninguém e aos poucos subiria sua própria montanha, conselho dado por Zaratustra. Adormeceu ao som dos Metallica e acordou com as batidas na porta, chamando-a para a escola.