Todo movimento da História necessita de um certo distanciamento de modo a permitir a fria interpretação dos factos. Por ser um ensaio histórico, o livro “O Homem Revoltado” (Record, 351 p.) (“L’Homme Révolté“), do franco-argelino Albert Camus (1913-1960), publicado em 1951, justifica a sua leitura nos dias atuais, quer pela beleza de estilo, quer pela lucidez e elegância camusiana na arte do ofício. Aliás, a temporalidade parece não ter relevância para o editor do jornal Combat, que já houvera sentenciado a humanidade a uma labuta infrutífera de rolar as pedras montanha acima, comparando o nosso trabalho inútil ao herói trágico Sísifo (analisado no ótimo “O Mito de Sísifo” (“Le Mythe de Sisyphe“)), publicado em 1942.
Em “O Homem Revoltado”, Camus quer investigar a revolta ao longo dos tempos, começando com o absurdo e o assassinato, buscando as causas primeiras da dissidência que acomete o indivíduo, quer na esfera mais privada, quer pertencendo a uma casta e a um credo. Um dos filósofos citados neste livro é o prussiano-alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Interessante um adendo acerca da doutrinação hegeliana de que a verdadeira filosofia se confundiria com a História revelada, aquela que chegou a ser proclamada pelo autor de “A Fenomenologia do Espírito” (“Die Phaenomenologie des Geistes“) como “O Absoluto sou Eu” (já tratei de Hegel aqui).

Se entendermos que Hegel pretendia a explicação filosófica atravessando os períodos históricos culminando com a revelação da Verdade, é necessário compreendermos que a História, e consequentemente a Filosofia, já havia sido totalmente revelada por ele. Esse totalitarismo filosófico escorou as bases de um totalitarismo de Estado, a ver a legitimação de um poder que infestou a Europa em duas Guerras Mundiais e uma Revolução Russa, todas apoiadas por governos autoritários que pretendiam ser os porta-vozes da verdade.
Camus possui uma singularidade especial: houvera sido membro do Partido Comunista Francês, mas desligou-se por divergências. Abandonou um cargo na UNESCO por não concordar com a entrada da Espanha, do ditador Franco. Abandonou amizades e rompeu com a maioria de muitos que buscavam seleccionar o que havia de melhor numa ideologia para professarem a sua fé.
Fazendo uma ressalva à sua genialidade, é o caso de Jean-Paul Sartre (1905-1980) que fez vistas grossas para o extermínio em massa do medíocre governo de Josef Stalin, no que, aliás, se rendeu a este facto mais tarde. Por causa dessa discordância e de outras decisões custosas a ambos, o fim da amizade entre Camus e Sartre fez o primeiro soltar as suas amarras em direção a uma solidão cada vez mais reivindicada.
É essa “solidão revoltada” que aparece no livro, a desilusão como característica importante, na verdade uma coleção de ensaios com um carácter hegeliano, didaticamente escrevendo. Todos eles percorrendo um período dessa História da Filosofia. Camus fala de heróis ao longo dos tempos, reais e fictícios, discorre com a mesma beleza sobre Prometeu (criado por Ésquilo) e Friedrich Nietzsche. Compreende bem a missão visionária de um Karl Marx, escreve sobre Bakunin, discute “O Contrato Social” de Jean-Jacques Rousseau, contrasta a construção de uma ideologia com o cinismo de um Marquês de Sade, dita as contradições do génio Rimbaud, atribui a Van Gogh o estranhamento de se sentir Deus ao criar.
Explica a morte do “rei bom” Luiz XVI, que significou a guilhotina à ideia do poder monárquico advindo do poder divino no desenrolar da Revolução Francesa. Discorre sobre Dostoievski e a sua revolta contra Deus culminando na redenção e fundamenta a dicotomia entre Jesus de Nazaré e o Cristo. Determina o reicídio e o deicídio, atribuindo ao homem o desespero do desamparo, da solidão derradeira. Camus analisa esses vultos da História com uma clareza impressionante.


Inúmeras “solidões absolutas” se reuniram sob a tutela do Partido, sendo este uma fração do Estado. Elegeram líderes medíocres, travestidos de revolucionários. Daí o mundo vivido por Camus, no período em que as Guerras Mundiais transformaram a Europa numa colcha de retalhos de ideologias truculentas e suicidas. Advém daí personagens tais Adolf Hitler, Josef Stalin, o “Hitler menor” Mussolini e outros. Todos eles tutelados pela distorção da linha de pensamento de verdadeiros filósofos: Nietzsche foi usurpado do direito de se defender e de alertar que a ideia de “Super Homem” nada tinha a ver com os campos de extermínios nazistas.
Por sua vez, Marx não pretendia um Estado soviético stalinista, sendo a sua filosofia adaptada para melhor servir aos líderes “revolucionários”. Como na citação: “Sabe-se enfim que o Instituto Marx-Engels de Moscovo interrompeu a publicação das obras completas de Marx em 1935, quando ainda faltavam mais de trinta volumes para serem publicados; sem dúvida, o conteúdo desses volumes não era suficientemente ‘marxista’” (Camus, p. 220, 2005).
Quando Camus faleceu, os Estados Unidos da América estavam a reconstruir a Europa através do Plano Marshall. Nem se visualizasse um futuro, ele poderia supor o recrudescimento do totalitarismo tão bem representado nestes dias.
Somado a isso a mediocridade dos seus líderes, a ver um George Walker Bush, com a sua missão messiânica de guardião “da moral e dos bons costumes”, salvaguardando a América nos edifícios do Word Trade Center, como síndico de um prédio ostentoso e frágil; da acefalia de um Donald Trump que só faz mentir; contraponto a isso, a estupidez messiânica do terrorismo fundamentalista de um Osama bin Laden, que trocou a ingenuidade revoltada pelo assassinato indiscriminado e estéril. Camus estranharia a Revolução Cultural de Mao, a sub filosofia de um Che Guevara, a ditadura de Fidel Castro e os seus respectivos filhotes: Pinochet, Videla, Hugo Chávez e Maduro.
Na loucura cada vez mais inconsequente, na troca do Deus cristão pelo Deus da pós-modernidade, na ausência de um solo propício para a verdadeira revolta, a humanidade vai se vendo fragmentada a rolar a sua pedra morro acima, atestando o erro da previsão de Hegel de que a História havia terminado, sendo a História o nosso dia-a-dia, com toda a nossa desonra e descaso. Por falar em pedras, mais valeria o pensamento de Saint-Just: “Todas as pedras são talhadas para o edifício da liberdade” (Camus, p. 157, 2005).