OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

A cidade amanhece, levanta, estuda, trabalha, fica à toa, descansa, alimenta, deita e dorme. São ónibus lotados que levam trabalhadores de periferia ao grande centro comercial, são empregadas domésticas que levantam tão cedo que, quando chegam para preparar o café da manhã dos filhos da família abastada, na correria dos preparativos e dos pormenores, vislumbra quase um almoço, pois seu fuso horário é outro. Então, sinceramente, não dá para se ater a uma pessoa que sofre de depressão por causa de um luto eterno e que, na ociosidade e auto-piedade, fica arrancando casquinhas no cocoruto da cabeça. Ela não sabe, mas é apenas mais uma. Perdida na multidão.

Também não adianta um professor leccionar em determinada sala por cinquenta minutos uma aula grandiloquente sobre os grandes problemas físicos, emocionais e psicológicos da humanidade; é pouco tempo para fazer enfrentar o dia a dia e o vazio de jovens que, como autómatos, caminham perdidos entre a ilusão e a certeza de uma profissão vindoura. Por status e senso de colocação, almejarão para si carreiras respeitadas, como cirurgiões ou juízes, mas, coitados! Não percebem que serão apenas um no sistema de vida irrefletido. A cidade tem coisas mais urgentes para resolver, como o fato de os vendedores de sacos alvejantes nos sinais conseguirem ou não o sustento para seus filhos, alguns deles inclusive se arriscando no trabalho pouco valorizado. Por isso, um homem chorando no parque municipal por causa de seu namorado não diz muita coisa. Sentimos muito, mas há a premência de resolver outras questões, como os drogados da praça que fizeram do local uma cracolândia e, como zumbis, atemorizam donas de casa que têm que passar por ali para fazerem compras. Policiais também impotentes frente ao descaso e abandono. Não adianta muito coibir, a coisa cresce como piolho na cabeça. Por isso, deixemos uma dondoca fútil arrumar os seus preparativos para uma viagem a Paris. Coitada! Será apenas mais uma. Arriscar-se-á pelos metros da capital francesa? Esse mundinho particular e em condomínio assegurava deslocamentos como se a pessoa estivesse em uma bolha, e enquanto isso garis varriam calçadas e empurravam carrinhos com lixo e folhas secas. Adiantava pouco tribos de gays, lésbicas e afins; nada entendiam que pertencíamos todos a uma tribo específica, a “tribo dos perdidos”. Garçonettes serviam sanduíches que tinham gosto de plástico; o manobrista visualizava espaços para estacionar e que se danasse o gosto pelas letras e pela literatura clássica. Que fosse ser clássico em outra época… Quem sabe inventariam um dia uma máquina do tempo que transportasse esses cultos para conviverem com Balzac (com este dando um calote em um empréstimo pessoal), conversando com Zola quando este estivesse sofrendo toda sorte de perseguição por conta de sua defesa a um oficial judeu; bebendo e jogando com Dostoievski e consolando Kafka após mais um fim de noivado com Felice. Que se danassem as pessoas cultas! Na cacofonia virtual, nos fragmentos audiovisuais, quem sabe a super-conexão não tivesse nada de doentio e fosse apenas a certeza de que nos tornamos robôs? Nessa Matrix, estaríamos mesmo nessa dimensão? Afinal, tomamos a pílula azul ou a vermelha? Enquanto motoristas de ónibus se stressavam pelas ruas da capital, trocadores eram humilhados por passageiros sem troco e se calavam frente aos que simplesmente pulavam as roletas, diretrizes educacionais eram traçadas por equipes escolares que enxergavam a coisa toda como um ideal, um conteúdo programático. Importava pouco se preocupar com uma senhora com cancro, era só dar uma passadinha em hospitais públicos e particulares para perceberem que a doença era aliada da morte em luta contra a vida. Além dos tratamentos de cura e correção, acidentes proporcionavam pernas amputadas (os motociclistas que o digam), cabeças rachadas a golpe de pau (brigas conjugais, brigas entre torcidas e brigas por eu ser verde e ele amarelo) e acidentados em vias públicas que, de uma hora para a outra, foram contingentes. Apenas contingentes. Então, por que se preocupar com uma única pessoa que expõe o seu cancro em praça pública? Prostitutas se arriscavam no fio da navalha, de um lado os cafetães e, do outro, clientes sujos que exigiam sexo oral sem camisinha. Apanhavam, e algumas apanhavam mais em taras não consentidas pelas esposas desses animais. Era de assustar jogarem as notas do programa em cima do corpo sujo da mulher humilhada; jogarem notas era quase outro gozo, na sujeição da fêmea. Portanto, devemos nos preocupar pouco com um advogado vexado numa firma de advocacia, recebendo conselhos de amigos para que dissesse à esposa para não se expor tanto. Que se danasse ele e a sua moral, ainda mais quando sabia que lesara clientes sobre-taxando tabelas e recebendo comissões por fora. Super-heróis? Que nada! Eram apenas trabalhadores balançando com o vento, limpando vidraças do lado de fora em arranha-céus que pareciam tocar o infinito. E como balançava! Dava quase uma vontade de se jogar! De forma que não podemos nos preocupar com o vazio de uma adolescente riquinha e que não encontrava refúgio em bens materiais para se sentir melhor, especial. Auto-destrutiva ou não, certamente não possuía o vigor da pobre menina negra da favela que corre pelos becos à cata do alimento do dia, talvez o único. Sentimos muito, mas na crónica desta cidade devemos ser socialistas e abranger o todo. Reunião de executivos com bebidas caras e comidas idem. Ternos, gravatas e sapatos engraxados, pastas executivas e o desejo de se afirmarem como um pénis gigante, num obelisco de sucesso e conquista. Alguns “pintos moles” que engoliam Viagra para se sentirem másculos, afinal, não podiam falhar. Nunca. Sorrisos e piadas quando fechavam algum grande negócio, essa merda toda que podia ocasionar demissões e mais demissões por enxugamento da máquina, e nem se importavam os putos com a colocação profissional de seus antigos comandados. Evolução da espécie, como diria Darwin. A cidade dos sobreviventes, como todas as outras, quando a indústria farmacêutica prolonga as dores e as vidas a custa de remédios e mais remédios. Longevidade estranha, essa de prolongar quantidade em detrimento a qualidade. Bem faziam os medievos, que tinham expectativa de vida até os 44, em média. E o ato imbecil de apostar em partidas de futebol numa loteria podia, quem sabe, fazer sentido se a coisa fosse tão sem sentido assim. Alguns infelizes apenas se iludiam com o futebol, apontavam até algumas zebras e, em alguns momentos, apostavam contra seu próprio time. Mas interessante: como o prémio passava ao largo de pagar os milhões de uma megassena, talvez a coisa fosse por diversão apenas. E dúvida atroz: aposto no Treze da Paraíba, no Flamengo do Piauí ou no empate? Dúvida existencial. E por falar em futebol, os meros torcedores. As câmaras da TV flagravam emoções, desesperos e choros. Nas arquibancadas, alguns levando porrada para entrarem no estádio, enrolando-se em bandeiras e sofrendo, xingando, berrando, vibrando. E mal sabem os infelizes que os milionários atletas de futebol profissional estão pouco se lixando para esse amor. Ao final da temporada, trocarão de clube e, na apresentação, beijarão o escudo e farão juras de amor eternas àquela agremiação. Isso até a roda girar novamente. A cidade e o seu barulho ensurdecedor de buzinas, freadas bruscas, mais xingamentos e incompreensões. A cidade de seus assaltantes, essa gente tão incompreendida e que ocasionava efeito colateral ao vitimar outras pessoas ocasionando perdas. Tá pensando o quê? Vida de assaltante é vida dura! Alguns com armas de plástico, fingindo ser de verdade, devem controlar a sudorese ao anunciar o assalto, pois nas primeiras vezes passa literalmente um frio pela espinha; devem fingir segurança quando fazem a rapina nos incautos e ossos do ofício; o pior é quando o assaltado revida e enfrenta. Tiros são dados (claro, nas armas reais), e tudo porque o infeliz se assustou e, porcaria!, por conta de um celular ‘tomou um tiro nos cornos’. E depois vem a investigação, o alarido da população, reportagens de TV, essa merda toda. E acham que é fácil para o meliante aprender o dialeto das ruas: “Perdeu, mermão!”; “Fiquem quietos, não quero matar trabalhador não, porra” (suprassumo da contradição: não querem matar, mas levam seus pertences) e quando a polícia pega, é sempre o mesmo esculacho: porrada, porrada e mais porrada. Jogam-nos nos camburões e a reportagem da TV mostra os esfolados. A arte da conquista e do desejo e do sexo e da tara e da conquista e do desejo e essa roda viva que faria Schopenhauer vomitar. A cidade é uma cacofonia de pessoas singulares que pertencem a uma mesma raça, mesmo pensando ser diferentes.

Franz Kafka
Arthur Schopenhauer

Não tendo refletido acerca dessa singularidade na cidade na manhã de hoje, tudo o que Gregório quer é curtir a folga. Escreverá um artigo. Sim, adiantará o artigo que é entregue religiosamente toda quarta. Reflete sobre os últimos encontros, as últimas conversas e busca inspiração em lembranças desses encontros. Sem sentir-se especial, liga o notebook e passa a digitar, a esmo, com um ritmo acelerado e emocional. Digita e os dedos fazem a vez de cérebro. De uma só sentada, como dizem. Após o ponto final, revisa. Corta excesso. Acrescenta um ponto de vista. Tem que se ater à limitação da coluna. Revisa mais uma vez, digita o e-mail e envia. O seguinte texto:

Obscurantismo X Iluminismo

Gregório Mendes (GM)

Há no mundo uma luta gigantesca, ao longo dos séculos e séculos, entre o obscurantismo e o iluminismo. Não escrevo sobre maçonaria, Nova Ordem Mundial, nada disso. Escrevo sobre o embate da luz contra a ignorância e, hoje, em pleno século XXI, devemos ficar atentos a esse embate. Como filósofo, sempre tive em mente que estava em uma trincheira, formando uma barricada contra esse mundo ignóbil que aí está.

Exemplos do mundo ignóbil, burro e doentio: “torcedores” que marcam confrontos pela internet para darem com o pau na cabeça do outro pelo facto do infeliz ser vascaíno, sendo ele flamenguista; fanáticos religiosos que matam semelhantes que não acreditam em suas crenças (para um ateu como eu, fico imaginando o que um xiita pensa sobre minha humilde pessoa); mães e pais que não se ocupam (e se preocupam) com a educação de seus filhos, perpetuando a espécie dos bestas-feras que não sabem interpretar um simples artigo de jornal, os chamados limitados intelectualmente; pessoas intolerantes (e intoleráveis) que, sob o anonimato da internet, disseminam ódio contra adeptos de outros partidos políticos, discriminam credo, raça e opção sexual e possuem a característica de ficarem muito “machão” na hora de ofender os outros. Esses geralmente são assassinos da língua portuguesa, e suas burrices saltam aos olhos. Adendo: meus respeitos aos burros (os animais irracionais, que são bastante inteligentes!). Nunca tive paciência para lidar com esses energúmenos. Afianço sempre que tenho zelo pela boa escrita. E receio de me contaminar. Pessoas que dizem com orgulho “Nunca li um livro na vida”, e idiotas!, proclamam aos quatro ventos a sua burrice. E exemplos não faltam: podem enumerar, refletir e apontar os desvios de conduta desse mundo obscuro, o que deve representar cerca de 95% do planeta. Como disse certa vez o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard: “A multidão é a mentira!”.

Do lado de cá, na trincheira e na barricada, os iluministas, os antigos e os novos. Nosso time é seleto, representado por pessoas que, ao longo da história, contribuíram para a excelência de um mundo melhor. Alguns exemplos: Sócrates, Jesus de Nazaré, Santo Tomás de Aquino, Maquiavel, Cristóvão Colombo, Descartes, Spinoza, Kant, Voltaire, Galileu Galilei, sir Isaac Newton, Balzac, Charles Darwin, Nietzsche, Sigmund Freud, Albert Camus, Martin Luther King, Stephen Hawkings, Bill Gates, Angela Merkel, Barack Obama e mais uma gama. Nós, humildes frequentadores dessa trincheira, exercemos algumas atitudes simples e que nos fazem ser diferentes no meio da massa estúpida. Não se trata de fórmula mágica, apenas respeitamos o direito de opinião do outro (seja ele botafoguense, vascaíno ou tricolor). Compreendemos que Internet é uma ferramenta maravilhosa e que possibilita a propagação de ideias, então, por que agredir ao invés de construir? Somos o que publicamos, simples assim. Respeitamos os homossexuais, heterossexuais, bissexuais, ateus, atleticanos, pervertidos e recatados (resumindo, respeitamos  todos). Lemos para abrir o nosso leque e entendermos a evolução ao longo dos tempos. Antes de sermos críticos, somos autocríticos.

Se você está lendo este texto agora, parabéns! Está fazendo parte dessa trincheira connosco. Luz ao invés das trevas. Continuemos nessa jornada, tentando nos salvar dessa barbárie que aí está. Proponho um exercício a todos vocês: enumerem 10 pessoas excelentes e iluminadas que são seus exemplos. Enviem para o e-mail acima. Até a próxima!

Martin Luther King Jr.
Sigmund Freud

Jeito engraçado de escrever Gregório tinha! Buscava interação e, quando muito, o que recebera de retorno de seus escritos para o jornal de bairro foi para que escrevesse um texto mais positivo, para ajudar as pessoas. Estava nesse grau de digressão quando recebeu a ligação de Carla:

— Oi Greg! Tudo bem?

— Olá Carla! Tudo. E você?

— Estou bem. Saí da escola agora. Estava com vontade de conversar um pouco. Você está ocupado?

— Não. Pode falar.

E conversaram sobre a vida, as vontades e Carla confirmou o jantar para a terça seguinte; perguntou se Greg queria que o buscassem e ele disse que não era necessário. Chegaria lá. Carla deu instruções de como chegar à portaria, o nome dele já estaria lá, essas instruções básicas. Perguntou qual seria a agenda do professor para o final de semana. Greg desconversou e, com vergonha de afirmar que não iria fazer nada demais, apenas dormir, comer, dormir novamente e corrigir algumas redações, disse que não havia decidido nada. Carla informou sobre um filme legal, que estrearia num cinema Cult, sendo o filme de diretores sueco e dinamarquês. “Deve ser algo sombrio!”, pensou, dizendo: “Deve ser algo bacana!”. Carla disse que era sobre angústia, depressão, frio e solidão. Greg pensou que os escandinavos podem mesmo brincar de angústia, não tendo que lutar pelo pão de cada dia e com renda per capta que batia vários dólares em relação a outros países. Viajou imaginando o porquê de brasileiro ser tão deslumbrado com as coisas lá fora; lembrou-se de Nicodemos que havia visitado vários países (pelo menos ele dissera isso) e estranhou o facto de Nico morar aqui ainda, nos trópicos. Deve ser uma pessoa resignada, pensou. Mas a etnia dinamarquesa fê-lo lembrar-se de Kierkegaard, o filósofo do século XIX. Chegou à conclusão de que as terras frias levavam certamente a uma angústia existencial. Fios de pensamentos disputavam atenção com a fala da interlocutora que, depois de algumas hesitações, convidou-o:

— Venha ao cinema comigo.

— Carla, realmente, não sei.

— A gente toma um café, assiste o filme e conversa depois.

— Posso te falar amanhã?

— Não. Hoje mesmo. Marcamos para amanhã, sessão das duas e meia. Estarei lá a partir de duas horas. Tchau. Valeu a aceitação – e desligou.

Greg sorriu. Como não havia nada de especial para fazer, pensou em aproveitar o cinema e tentar colocar alguns exemplares de seu livro na livraria ao lado. Preparou algo para comer, almoçou e dormiu.

Diego tinha 15 anos. Primeiro encontro com Luísa Gates. Quase conversavam teclando. Um de um lado da mesa, mordiscando um sanduíche. A outra teclando, bebendo um suco, teclando e mostrando ao namorado as curtidas que amealhara, as amigas e seus namorados e quem estava com quem. Por trás de tanta futilidade, Diego escondia nas profundezas do seu ser o intuito de se vingar. Sua mãe fora exposta publicamente através de compartilhamentos e chacotas, pior que isso foi a piedade alheia, e o filho sentira que a mãe mudara um pouco. Nos últimos dias, ao invés de se expor se recolheu e, amuada, ficava remoendo coisas e atitudes. Enternecida, redobrava os cuidados com os filhos, e Diego sentia o peso dessa carência. Descobriu Diego ter personalidade psicopata e, sinceramente, temia descobrir esse seu “outro eu”. Um desejo de vingança corria-lhe pelas veias. Mas tinha que dissimular e encetar o namoro, e isso não era muito difícil, uma vez que a atenção da namorada ficava vinte e cinco horas na Internet. Mal comia. Mal dormia. Luísa falou de seus amigos canadenses, australianos, americanos. Diego sorriu. Perguntou se sua mãe estava em casa e, quando ouviu a negativa, perguntou se ela não queria ficar a sós para curtirem um pouco. Luísa postou: “Saindo com o meu namorado Rodrigo agora. Ficar de bobis em casa!”. Diego pagou a conta, sorriu e arquitetou a vingança.

Marcelo Pereira Rodrigues

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