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O livro “Camus e Sartre: O polémico fim de uma amizade no pós-guerra” (Editora Nova Fronteira, 2004, 399 p.) de Ronald Aronson, é mais do que uma biografia partidária e mexeriqueira tratando de coisas pequenas. Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Albert Camus (1913-1960) foram dois pesos pesados da literatura/filosofia/política francesa no século XX. Dois intelectuais muito gabaritados e duas estrelas ao mesmo tempo. O encontro entre duas mentes tão fecundas, a admiração mútua e a amizade decorrente daí resultaram em conquistas para ambos.

No quesito romance, contribuíram para a literatura com obras-primas tais “A Náusea“, “Os Caminhos da Liberdade” (com seus três volumes “A Idade da Razão“, “Sursis” e “Com a Morte na Alma“), de autoria sartriana; “O Estrangeiro“, “A Peste“, “A Queda“, de autoria camusiana. Livros que marcaram uma geração, afinal, como dissociar Sartre de Antoine Ronquentin de “A Náusea” e Camus do sombrio Sr. Mersault de “O Estrangeiro”?

Ambos franceses, sendo Camus de origem argelina, o encontro entre os dois escritores deu-se em plena Segunda Guerra Mundial, onde intelectuais e ativistas, em conjunto com setores da sociedade civil, organizaram a Resistência clandestina, pois a França como um todo estava tomada pelos alemães de Hitler. Enquanto Camus já era um membro entusiasmado do Partido Comunista Francês, Sartre era um diletante que não gostava de se envolver em política, assumindo para si uma liberdade incondicional e não engajada, muito semelhante à de sua personagem Mathieu em “Os Caminhos da Liberdade”.

Albert Camus

As circunstâncias ofereceram aos dois (Sartre e Camus) a oportunidade de um conhecimento interessante: o engajamento emprestaria ao homem Sartre a oportunidade de atuar no mundo, que ele vinha evitando há muito. Já uma estrela literária e filosófica em Paris durante a década de 1940, ele via em Camus um iniciante em literatura, mas um artista de muito talento. Por outro lado, Albert Camus, tentando-se firmar na sociedade francesa, era um combativo escritor, fundador do sugestivo jornal clandestino Combat, mas intentava o sucesso literário com um orgulho desmedido. Mas o sujeito tinha lá o seu talento!

Assim, dá para ter uma ideia do encontro destes dois intelectuais e é de admirar a postura de Camus: não queria ser visto como um satélite de Sartre, e logo de caras refutou a pecha de “existencialista”, a moda filosófica do pós-guerra, num movimento anunciado talentosamente por Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e outros.

Homens do seu tempo, Sartre e Camus possuíam desde o primeiro encontro uma admiração conturbada um pelo outro. “Dois bicudos não se beijam”, esse adágio popular serve para ilustrar um pouco a relação de ambos. Mas o advento do existencialismo no pós-guerra incorre na Guerra Fria como movimento histórico, onde o mundo fica dividido entre o Ocidente (capitalista) e o Oriente (socialista). Estados Unidos de um lado. União Soviética do outro. Chamados a participar dessa dialética, os intelectuais, através de preleções, artigos e predisposições filosóficas, tomam partido.

Albert Camus, dececionado com os rumos do Partido Comunista Francês, desliga-se do mesmo e passa a encará-lo com um olhar crítico. O outrora pensador independente e adepto da liberdade irrestrita abraça a causa do socialismo-comunismo, ou seja, Sartre nega-se, por miopia, a analisar as atrocidades soviéticas do tirano Stalin. A miopia aqui foi usada em sentido figurado, uma vez que Sartre era míope de facto e feio como um sapo. Mas o que vale é a inteligência, não é mesmo?

Jean-Paul Sartre

Camus ainda escrevia para jornais e Sartre era editor-chefe da melhor revista cultural da época, Les Temps Modernes. Nos idos de 1950, os dois já eram personalidades mundiais, sempre chamados a opinarem sobre os mais variados assuntos, sendo voz de consciência de uma grande parte de intelectuais mundo afora. Enquanto Sartre aderira à literatura engajada, Camus era muito crítico a essa aceitação pura e simplesmente.

Analisando o comunismo e as suas mazelas, Camus publica um livro de ensaios intitulado “O Homem Revoltado“. Neste, há um libelo de crítica muito bem fundamentada a Sartre e à sua prática filosófica. Não só a Sartre, mas Camus desprende-se de muitos dogmas e o resultado final disso é o sentimento de revolta, conceito filosófico, que simplesmente destrói muitos dos conceitos filosóficos sartrianos.

Sartre, dentre muitos defeitos, tinha uma qualidade interessante: não gostava de censurar quem quer que fosse, e passou a tratar Camus com certa frieza, sem, contudo, se dignar a ler a repercussão da obra camusiana. Sete meses depois de publicado “O Homem Revoltado”, é que a sua revista faz uma crítica sincera e… definitiva. Camus já estava a ficar incomodado com a falta de resposta de Sartre. Tampouco obteve discussões na sua prestigiada revista e isso era quase um insulto para ele. Pior: quando a crítica sobre o seu livro foi publicada, não foi Sartre quem a fez, mas um pupilo menor, na visão de Camus: Francis Jeanson. Pior, a crítica desferida aos conceitos de Camus contrariou-o profundamente.

Camus, dentre muitas qualidades, tinha um defeito até engraçado: não suportava pontos de vistas diferentes dos seus e reagia até com uma certa raiva ao debater com os seus oponentes. A publicação da crítica na maior revista filosófica e cultural de França, na revista de Sartre, e contendo uma avaliação de um pupilo menor, chocou Camus. Fez o previsível: escreveu atacando diretamente Sartre.

Foi quando Sartre resolveu trair um dos seus princípios mais soberanos: não responder críticas. E conhecendo como poucos o seu “amigo” Camus, apontou o óbvio, afirmando que o argelino era um frívolo, não dotado de muita profundidade filosófica e desancando numa série de argumentos frágeis escritos pelo outro. A carta é tão contundente que se transformou numa peça literária de alto valor, onde se podem observar pontos de vistas distintos entre dois génios. A receção de Camus beirou a depressão.

O escritor Ronald Aronson

Fora exposto publicamente nos seus pontos fracos; quando designamos um adversário, devemos ter sempre em mente se o oponente conhece os nossos pontos vulneráveis. E Sartre, esse leitor de consciência e de alma, conhecia! Rompia-se ali uma amizade que tinha tudo para se consagrar, mas que nasceu sob o signo da “desconfiança mútua”.

Aquando do falecimento de Camus, num acidente automobilístico em 1960, Sartre foi chamado a fazer um panegírico e o seu texto emocionou toda a gente. Transformou-se também numa outra peça fundamental da literatura, e o reconhecimento por parte de Sartre do estrelato do argelino, que era um facto.

Essas e outras discussões são expostas no brilhante livro de Ronald Aronson, que é professor de estudos interdisciplinares na Wayne State University. Tem escrita ágil e dinâmica, relatando muito bem as nuances entre os dois amigos que desandaram por serem estrelas. Diametralmente opostas, mas merecidamente reconhecidas. Enquanto Camus foi receber o Nobel de Literatura pelo seu livro “A Queda”, Sartre recusou-se a recebê-lo, quando foi laureado pelo excelente livro autobiográfico “As Palavras“. O que prova que o senso comum por vezes entende bem aquilo que poderia ser reconhecido como vanguarda.

Como leitor de Camus e Sartre, sei distinguir inteligências tão complementares: enxergo no Sartre o filósofo e em Camus o artista. Duas cabeças pensantes que moldaram e mudaram a minha forma de ver o mundo. Adepto de um em detrimento do outro? Seria pobre demais! Nesse livro de Ronald Aronson, observamos a vida do quotidiano sobressaindo-se aos sistemas filosóficos. A vida com as suas ruturas, desentendimentos, provando que por mais que o filósofo e o artista almejem a eternidade, estarão sempre fincados com os pés no chão para serem, primeiramente, homens. Homens de carne e osso, que se sentem ofendidos, agredidos, ultrajados.

No caso de Sartre e Camus, foram simplesmente duas estrelas fulgurantes, no que pese o meu reconhecimento da cegueira filosófica e política de Sartre, em muitos casos. Recomendo a leitura do livro de Aronson e principalmente a leitura dos originais dos dois pensadores citados: realmente, são obras que entraram para a história da produção artística da Humanidade.

Indicações de algumas das melhores obras de Sartre:

  • O Muro” (1939)
  • A Náusea” (1938)
  • Os Caminhos da Liberdade” (1945-1949)
  • A Prostituta Respeitosa” (1965)
  • Com as Mãos Sujas” (1948)
  • As Palavras” (1964)

Indicação de algumas das melhores obras de Camus:

  • O Estrangeiro” (1942)
  • A Peste” (1947)
  • O Mito de Sísifo” (1942)
  • Calígula” (1944)
  • O Homem Revoltado” (1951)
  • A Queda” (1956)
  • O Primeiro Homem” (romance inacabado) (1994)

Marcelo Pereira Rodrigues

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