Nesses tempos de pandemia, um livro ganhou destaque e retornou às listas dos mais vendidos no mundo. “A Peste” (“La Peste“, em francês) é um dos melhores romances de Albert Camus (1913-1960), expoente daquilo que se convencionou denominar corrente existencialista, que teve em Jean-Paul Sartre (1905-1980) outro de seu ícone. Diferentemente do existencialismo ateu de Sartre, Albert Camus fez-se notar desde cedo por uma literatura que pregou uma certa metafísica da solidariedade, exemplo bem apresentado em “A Peste”. Ele mesmo não gostava se ser taxado de existencialista, e afirmava sempre ser o escritor do absurdo.
O enredo é envolvente: Oran é uma cidadezinha argelina com ares provincianos, constituída por um povo comerciante. Narrado no singular ano de 194… (as reticências são intencionais), Camus empresta ao personagem Dr. Bernard Rieux a constatação de que Oran está sendo vitimada por uma epidemia de proporções malthusianas.
Não à toa, o Dr. Rieux é médico e sofrerá ao longo da trama os dilemas de ser o marido de uma enferma, de ser o filho relapso, uma vez que entrou de cabeça no combate à Peste, e cansado demais para assumir a sua angústia individual, já que se vê cercado por personagens perdidos, encerrados numa prisão – todos os habitantes da cidadela foram postos em quarentena. Com olhar vivaz e melancólico, o Dr. Rieux lutará por cada vida até chegar a um sentimento de impotência, como observado na citação a seguir:

“Porque sabia que, durante um período cujo término não conseguia vislumbrar, seu papel já não era o de curar. Seu papel era diagnosticar. Descobrir, ver, descrever, registar, depois condenar, essa era a sua tarefa. Esposas agarravam-lhe as mãos e gritavam: ‘Doutor, salve-o’. Mas ele não estava ali para salvar a vida, estava ali para ordenar o isolamento.
De que servia o ódio que lia, então, nas fisionomias? ‘O senhor não tem coração’, tinham-lhe dito um dia. Sim, ele tinha coração. Servia-lhe para suportar as vinte horas por dia em que via morrer homens que haviam sido feitos para viver. Servia-lhe para recomeçar todos os dias. De agora em diante, o coração mal dava para isso. Como esse coração seria suficiente para dar vida?“
Parece profecia em face dos médicos e enfermeiros italianos e espanhóis que neste ano passaram por tamanho stress e muitas vezes tiveram que decidir quem viveria e quem morreria. E claro, em diversas outras partes do mundo.
Um aspecto interessante nessa epidemia descrita em “A Peste” é que ela desfaz os laços hierárquicos da sociedade. Assim, o filho do juiz de instrução perece acometido de forte convulsão e febre. Um foragido da Justiça, o Sr. Cottard, encontra redenção na epidemia, que faz de todos, sem excepções, foragidos. Encontra na Peste algo que o une aos seus concidadãos. Grand é um funcionário da Prefeitura com pretensões literárias, mas que não consegue sair do primeiro parágrafo do seu vindouro livro.

Personagens tão fragmentados não escapam do olhar crítico de Camus e é essa fragmentação que implica a todos um dever que realiza o social. O indivíduo por si só é o organismo pelo qual ele entende a coletividade. Daí o sentido metafísico da obra camusiana. Não pretendida em um Deus, em uma doutrina filosófica, mas sobremaneira nas nossas mais efémeras vicissitudes. Dessas pequenas ações, Camus entende a teia de relações e de necessidades entre os indivíduos.
Alguns críticos literários entendem que o romance “A Peste” não é nada mais nada menos do que uma brilhante analogia com a proliferação da ideologia nazista, verdadeira epidemia que, em nome do ultra-nacionalismo alemão, forçou os franceses a reunirem-se na famosa Resistência, uma vez que na década de 1940, Paris fora invadida.
Certamente análogo ao seu livro de ensaios, “O Mito de Sísifo“, herói este condenado a sempre rolar uma gigantesca pedra montanha acima. Os Deuses condenaram Sísifo a trabalhar eternamente já que, chegada ao topo, essa pedra rolaria novamente. Essa tarefa, para Camus, é delegada para a humanidade, que, periodicamente, vê as pedras rolarem, tais guerras, epidemias, preconceitos e intolerâncias. Albert Camus fez esse comentário por ocasião do discurso do Prémio Nobel de Literatura, que ganhou em 1957.
“A Peste”, publicada em 1946, é uma interessante narrativa para os tempos atuais, tanto linear quanto metaforicamente, com o surgimento da COVID-19 que solapou e está solapando o mundo. Parece nos alertar que as nossas medidas profiláticas devam ser solidariedade, amor e entrega a uma causa.
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