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Porque A Arte Somos Nós

Paulo Nardin, meu amigo alfaiate, me conta um facto real que virou piada, na rua da Praia, em Porto Alegre. Ele estava provando a roupa em um cliente português, quando entrou um amigo – ignaro – e lhe perguntou:

— Paulo, ouviste a última do português?

Paulo, embaraçado, assinalou:

— O senhor x aqui é português.

E o amigo achou uma saída, interrogando o cliente:

— Mas vocês também têm piadas de brasileiro, não é?

O cliente, sem dúvida uma pessoa espirituosa, olhou para ele e perguntou:

— Será que precisa?

A história tem graça por ser, agora, uma piada brasileira.

Trecho do livro “Hello, Brasil!”

No último dia 30 de março de 2021, faleceu de cancro, aos 72 anos, o psicanalista, escritor, articulista do jornal Folha de S. Paulo (o melhor do Brasil) e intelectual Contardo Calligaris. Italiano radicado no Brasil desde a década de 1970, escreveu, dentre tantas obras, o excelente “Hello, Brasil! e outros ensaios”, com o subtítulo “Psicanálise da estranha civilização brasileira” (Editora Três Estrelas, 295 páginas). Neste livro, o escritor faz uma minuciosa radiografia do Brasil, comparando-o com a Europa naquilo que ele tem de melhor e de pior, estranhando comportamentos culturais e surpreendendo-se ainda com ícones populares que ficaram no imaginário brasileiro, como a “Rainha dos Baixinhos” Xuxa.

Contardo Calligaris

Tentarei explicar o fenómeno aos patrícios: na década de 1980, a grande atração das manhãs era o programa “Xou da Xuxa” (com X mesmo). A apresentadora modelo era o ideal de beleza para os miúdos, e como já era de se esperar, os pais e as mães incentivavam as suas filhinhas a copiarem o figurino do ídolo. Contardo estranhou muito as crianças vestirem-se como prostitutas e percebeu que o grande desejo sexual que a Rainha dos Baixinhos causava era nos adultos, e isso era uma contradição. Costumo brincar que Xuxa teve uma importância fundamental na minha formação, pois aos 11 anos levava solenemente os encartes dos discos da rapariga para bater punhetas na casa-de-banho. Para tudo há que se ter uma serventia!

“Hello, Brasil!” é um livro ‘gostoso’, que vai deslindando essas nuances. Como semanalmente Contardo escrevia para a Folha de S. Paulo, as suas colunas sempre bem balizadas apontavam os caminhos, saindo da histeria de partidarismos de direita ou de esquerda, nesta chaga aberta que tem feito o Brasil sangrar muito ultimamente. Com ponderação, equilíbrio e filosofia, este psicoterapeuta colocava o Brasil no divã e ia analisando o paciente. Cabe a metáfora: penso que não apenas o Brasil, mas muitos países estão adoecidos, com as pessoas a perderem o sentido de alteridade para se colocarem no lugar do outro.

A falta de diálogo e tolerância, quando observo movimentos de extrema-direita na Roménia realizando protestos e consequentemente aglomerações, proclamando o negacionismo da ciência e a ineficácia das vacinas para combater a Covid-19; quando capitalistas mundo afora, os pequenos, os médios e os grandes, não se aperceberam ainda do óbvio: primeiro cuidemos da saúde, a seguir cuidemos de todas as outras coisas. E é só a partir da reflexão que encontraremos muitos pontos a serem esclarecidos. Com Contardo, semanalmente tínhamos este olhar diferenciado para os temas da contemporaneidade.

Sou adepto da teoria de que “morre o homem, ficam-lhe as ideias”. E como também diferencio os escritores em duas categorias: quase 90% de irrelevantes e certamente pseudos escritores, sem nada de importante para acrescentar ao nosso conhecimento, e uma seleta casta de pensadores que nos fazem sair do nosso castelo de meras certezas, provocando-nos a uma reflexão, coloco Calligaris neste último patamar.

Em 2018, tive a oportunidade de assistir a uma palestra dele no melhor festival de literatura do Brasil, a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) e no mesmo evento em que autografei exemplares do meu romance “A Queda“, presenteei-o com um e ele, ao receber o livro, sorriu e logo remeteu a Albert Camus (1913-1960), ao que eu concordei ser o título uma singela homenagem ao franco-argelino. Conversamos rapidamente e eu ainda aproveitei para colher o autógrafo do meu “Hello, Brasil!”.

Contardo Calligaris e Marcelo Pereira Rodrigues na FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty)

Ao escrever este humilde texto, sinto um misto de tristeza e alegria, mas reforçando a tese da sobrevivência das ideias daqueles que têm muito a nos ensinar, ressalto essa imortalidade conferida a todos os que publicam os seus argumentos. Despeço-me com mais uma citação/provocação e desejo que o povo português tenha, na grande media, pensadores que, desapaixonadamente, saibam tratar o paciente. No caso, o país inteiro.

Clinicando no Brasil, encontrei uma quantidade impressionante de exemplos de promiscuidade doméstica. O acesso das crianças à cama parental é frequente, até épocas tardias, assim como a extrema tolerância a fobias e enureses noturnas. A psicologização ajuda, por sinal, a desaconselhar uma sonora interdição, que seria salutar.

É curioso também como, na gestão do lazer da criança, o gozo tem a primazia: é raro que uma criança, ao descobrir que o aprendizado do piano, inglês, balé, ténis, hipismo, xadrez, etc. não cai do céu, encontre a injunção necessária para considerar com interesse o gozo limitado e trabalhoso de uma aprendizagem. A alternativa parece ser aceite pelo adulto tal como a criança a coloca: ou se goza na hora, ou então não vale a pena.

Le goût de l’effort, literalmente ‘o gusto pelo esforço’, ‘o prazer da dificuldade’: não parece haver uma expressão consagrada que possa traduzir essa peça-chave da pedagogia europeia, em que se trata de transmitir uma espécie de espírito olímpico permanente; importa treinar e participar, não ganhar. Qual é o interesse do goût de l’effort? Ele vale como princípio pedagógico claramente organizado em torno de um possível interditado: o gozo do corpo materno é impossível, e o gozo que é permitido a você está relacionado aos seus esforços (vãos) para atingi-lo. E a excelência de uma vida está relacionada à nobreza dos esforços: ser alguém, ou seja, um filho digno, é se distinguir no esforço, não é alcançar êxito.

Por isso, aliás, na Europa a manifestação aparente de gozo – sinais externos de riqueza, como os define o Estado, que os penaliza por meio de impostos – não é suficiente para enobrecer o sujeito.

Se o colonizador veio para gozar, não para distinguir-se no exercício da língua paterna, mas para tentar com ela o acesso a um corpo não interditado, o goût de l’effort não tem valor no Brasil. Aqui, só vale gozar.

Marcelo Pereira Rodrigues

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