“Quando uma mulher está perdida, não lhe resta senão arranjar um filho”
“A Idade da Razão”
O romance “A Idade da Razão” (Abril Cultural, 1972, 367 p.), de Jean-Paul Sartre (1905-1980) é o primeiro da trilogia que se segue com “Sursis” e “Com a Morte na Alma“, tudo perfazendo “Os Caminhos da Liberdade“. Mas a leitura do primeiro volume já caracteriza o principal daquilo que se enuncia no todo: a questão da liberdade na filosofia existencialista de seu autor. O livro é bastante envolvente e confesso, um dos meus favoritos.
Como um alter ego, Mathieu Delarue, 34 anos, é um professor universitário de Filosofia e que se enxerga livre no mundo, mesmo sem saber ao certo o que fazer desta liberdade. Não deseja se apegar a nada e a ninguém em especial, não quer tomar partido e observa a vida como um acúmulo de momentos vividos, pura e simplesmente.
Tem um relacionamento meio frouxo com Marcelle e é aí que ocorre a primeira confrontação da sua pretendida liberdade: ela está grávida e ao comunicar este facto a Mathieu, é ponto pacífico que deveriam tomar a decisão mais sensata que seria o aborto. Como a mulher é subserviente a ele, fica combinado então que assim iriam proceder. Pronto, está dado o problema prático com o qual o nosso herói terá que lidar.
A filosofia existencialista prevalece pelo acúmulo de todas essas corriqueiras experiências, por mais ínfimas que sejam. O professor vai a um café tomar um trago e conversar com Ivich, pela qual sente certa atração, sendo sua aluna, uma diabinha gostosa. Ela é acompanhada por Boris, espécie de fã do professor e o que ele mais perto pode denominar de amigo. Conversa vai, conversa vem, e surge a primeira preocupação prática no dia de Mathieu: ele precisa arranjar um dinheiro emprestado para pagar a uma clínica de aborto.
De inopino dirige-se à casa de Brunet, casado com Sarah e pai do menino Pablo. Eles têm um amigo em comum, Gomez, que se entregou a uma causa política guerrilheira e está em Barcelona. Conversam trivialidades e Brunet, com a sua cara estúpida de camponês, percebe que o amigo está amargurado. Este informa-o acerca da gravidez de Marcelle.

Cheio de dilemas, vai à casa do irmão, com o qual houvera sempre tido sérias discussões. Avista-se com a sua esposa Odette e reflete: “Odette é uma das poucas mulheres de Paris que acham tempo para ler“. Por pagar um preço de não desejar transformar-se num burguês, Mathieu sempre se havia sentido superior. Num jogo do gato e do rato, Jacques ironiza-o, diz subtilmente que até tinha o dinheiro, mas que não desejaria contradizer as convicções de Mathieu acerca das origens do dinheiro burguês, devido a esse facto declina de o emprestar. Sartre descreve muito bem as nuances e os dilemas do nosso herói, tendo que engolir o orgulho para se sujeitar a este pedido.
Enquanto isso, Daniel Sereno, amigo de Marcelle e Mathieu, tem uma conversa com a grávida e percebe o caráter volúvel de Marcelle, o que faz ver que ela não havia concordado em realizar o aborto de livre vontade, mas que tinha sido manipulada por Mathieu. Sereno é persuasivo e malicioso, sendo homossexual também. Não sabe ao certo, mas quer brincar um pouco com o castelo de cartas montado pelo protagonista.
Após certo tempo, Marcelle parece desejar o bebé. Irónico ao extremo, Daniel conversa com Boris e nesse enredo percebe-se que na trama que todo mundo conhece todo mundo, e é quando Daniel esnoba a filosofia de Mathieu: “Eu estudei-a como todo mundo. Mas a mim não souberam torná-la agradável. Creio que foi Delarue quem me desgostou da filosofia. Ele sabe demais para mim. Pedi-lhe várias explicações, mas quando principiava a dá-las eu perdia pé, parecia-me que nem sequer compreendia mais a minha própria pergunta“.
Boris tem uma amante mais velha, Lola Montero, e conversa com Mathieu acerca da possibilidade de ela lhe emprestar a dinheiro. Cheio de conflitos, o nosso herói empreende a estratégia e como a ocasião faz o ladrão, um facto intrigante irá acrescer à visita inusitada.
Cheio de viradas e transtornos, fica posto que o desejo de uma liberdade plena é quimérico. Mathieu é esse herói dúbio que sofre à medida em que esvazia uma garrafa de bebida, sendo este tempo introspetivo um enovelar de factos e possibilidades. Tudo está posto, aos poucos ele percebe que o desejo de não se comprometer independe da nossa própria vontade.
Amargurado, reflete, cito: “‘Levei uma vida desdentada’, pensou. ‘Uma vida desdentada. Nunca mordi; esperava, preservava-me para mais tarde – e acabo de perceber que não tenho dentes. Que fazer? Quebrar a concha? É fácil dizer. Aliás, o que me restaria? Uma pequena massa viscosa que se arrastaria na poeira, deixando atrás de si uma esteira brilhante’“.
Aliás, o livro é cheio de digressões filosóficas, algumas delas divertidíssimas! Um ser que se faz… sendo. Contradições que evocam aos dilemas da teoria e da prática, o certo é que o romance nos conduz pelas mãos em dois dias que passamos perambulando por Paris.
Quando estive na Cidade Luz, me remeti por diversas vezes ao livro e, quando tomava o meu chocolate quente no Café de Flore, senti a presença de Sartre ali (era cliente cativo) e observei o tempo, subjetivo e objetivo, o aroma da bebida e o formalismo do garçom, ao fim ao cabo percebi a náusea, mas por enquanto fiquemos por aqui. Num texto futuro, prometo escrever mais precisamente sobre “A Náusea“.


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