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Porque A Arte Somos Nós

Podem recordar a primeira de “Putinquistão” parte aqui!

2.ª Parte

Luiz perambulou por Atenas e pressentiu que as coisas ali não estavam boas. No mercado central ainda se comentava acerca da execução de Sócrates, injusta, embora muitos dos cidadãos se incomodassem com as provocações deste. Afinal, foi o corpo de jurados quem votou a sua sentença. Ele observou Meleto, um dos acusadores, mas não fez juízo de valor. Oficialmente, Anito foi outro dos acusadores, mas parecia que estava a viajar.

Discutia-se muito política e a cidade estava em polvorosa. O governo dos 30 Tiranos, a influência de Esparta e nem no cume do olimpo a deusa Palas Atenas parecia se preocupar com os atenienses. Luiz observou o pórtico na Academia que exortava a quem não apreciasse geometria, que ali não entrasse. Entrou.

Platão estava lecionando, os seus alunos copiando e discutindo e Aristóteles se destacava pela forte personalidade. Imbuído da sua missão, o viajante do tempo prestou atenção aos debates e acercou-se do Mestre Platão para sondá-lo. Sabia que a escola se dividia em atividades do pensamento que iriam para o exterior e algumas discussões que eram de foro interno. Escrever era uma delas e os copistas compilavam os diálogos do Mestre para uma leitura crítica e arremate depois. A posteridade acabaria conhecendo os diálogos socráticos através destes livros, verdadeiras obras de arte no campo da literatura.

Luiz acercou-se de Aristóteles e mais alguns amigos. Este estava preocupado. Como fora educador de Alexandre, e a ver a extensão de domínio dos seus exércitos macedónios mundo fora, conquistara tudo o que era conhecido até então e os atenienses ressentiam-se dessa perda de independência e autoridade.

Era uma cidade-estado que se havia perdido pela degeneração de valores, Sócrates já havia alertado sobre isso, quando os homens se ocupam mais da satisfação do corpo em detrimento à alma; quando os bens que poderiam ser adquiridos no mercado se tornam a preocupação central; quando a verdade é relativizada e no ignóbil adágio de Protágoras de que “o homem é a medida de todas as coisas“, etc.; enfim, a derrocada de Atenas se dera por conta da sua população que vivia às margens da reflexão.

Luiz, estranhamente, estava em êxtase naquele recinto. Ao mesmo tempo que ouvia tudo, parecia que a sua mente se acercara do entendimento de Immanuel Kant acerca das duas categorias que temos inseridos em nós, o espaço e o tempo. Entendeu a contribuição da filosofia à ciência e a contribuição para que físicos como Einstein e Hawking investigassem o universo.

Entendia que ele assumira a conceção de espírito absoluto de Hegel e tinha a autonomia de viajar pelo tempo, mas tudo eram impressões e pressentimentos. Como estava aterrado na sufocante Atenas, nada sabia do futuro e da sua condição. No recinto, estranhara a ausência de mulheres e na saída deparou-se com alguns escravos à espera dos seus amos. Os mais abastados tinham uma junta que o seguiam erguendo um guarda-sol, e foi quando abordou Aristóteles o questionando acerca da escravidão.

O Estagirita respondeu que a mesma era justificada, que na Terra alguns poucos nasceram para serem senhores; a maioria nascera para serem escravos. Luiz entendeu a contragosto a justificativa e também a palavra final do autor de “Ética a Nicómaco“. Afirmou ele que o filosofar necessita do ócio, que, enquanto ele estivesse retirado para pensar, nada mais natural que trabalhadores braçais fizessem o serviço do dia-a-dia.

Despediram-se e Luiz retornou à sua residência, refletindo sobre a necessidade de inclusão das mulheres, dos estrangeiros (as cidades-estados de então eram xenófobas) e escravos. Perguntava-se em que livro Platão estaria trabalhando e no apelo a que visse as coisas de um ângulo diferente. Se num famoso diálogo que lera do Mestre se emocionara com o facto de o escravo de Ménon saber geometria sem nunca ter estudado; se fora Sócrates quem aludira a outros mundos e a uma Verdade Eterna e imutável que significava Justiça. Bem, mas o certo é que para muitas pessoas teoria é uma coisa e a prática é outra completamente diferente.

Chegando em casa, Luiz foi abordado por Helena que lhe veio lavar os pés para que ele se servisse do almoço já arranjado. Soergueu-a e olhou-a nos olhos. Há muito não se apercebera dela, mãe dos seus três filhos. Ela estranhou o facto, perguntou se ele estava bem. Quando a convidou para passear com ele pela cidade no dia seguinte, ouviu-a dizer que ele estava pancado da cabeça, que certamente o Sol amolecera os seus miolos. Agradeceu e retirou-se para o quarto. Luiz ceou e num insight pressentiu que a Academia corria risco. Quem guardaria as obras do Mestre e de alguns dos seus discípulos, mais destacadamente Aristóteles, se tudo se viesse a transformar em ruínas?

Fez a siesta e viajou. Estava no Partenon e ao abrir os olhos deu de caras com a senhorita Flores. Foi informado que viajariam dentro de trinta e dois minutos e dezassete segundos, e questionado acerca do relatório e se conseguira incluir as mulheres e os escravos no escopo do famoso livro de Platão, foi transparente ao afirmar: “Não aqui. Não agora. Acredito que a viagem deva ser feita ao início do século X da nossa época. Ou seja, a época você sabe qual. Foram os monges copistas e estudiosos que resgataram estas obras clássicas e desconfio até de que por uma questão política e estratégica, deixaram as mulheres de fora e a futura democracia não será tão democrática assim.

À medida que se ia aproximando o momento da viagem no teletransporte, a cabeça do nosso viajante ia clareando e o entendimento básico era que para cada texto, caberia um contexto. A senhorita Flores afivelou os cintos, o seu e o do passageiro, e pelo espaço-tempo aportaram num mosteiro medieval, bem semelhante ao cenário do famoso filme inspirado no clássico de Umberto Eco.

Luiz acordou de um sono pesado e se deu conta de que perdera o ofício do dia. Ajoelhou-se em penitência e rezou. Temeu a bronca do frei e quando da hora do almoço foi questionado se melhorara da febre, afirmou que sim e fez parte do abastado banquete, com assado de porco, legumes, pão e cerveja. Era domingo e o dia de folga para os monges que ali viviam apartados do mundo.

Pediu licença e foi à biblioteca. Chamou Gonzalo e o bibliotecário informou-o acerca das versões do grego para o latim dos livros de Platão e Aristóteles. Luiz indagou se os intelectuais poderiam edulcorar algumas passagens e o interlocutor surpreendeu-se com o questionamento. “Claro que não. Embora alguns destes livros não possam sair além dos muros desta instituição. São perigosos. Posso afirmar que a nossa biblioteca recuperou e preservou vários tomos e sem o nosso zelo, este conhecimento estaria perdido. Quem entrega a vida a Deus é agraciado com essa riqueza. Somos guardiões. Você não pensa dessa forma?

Luiz disse que sim e aproveitando a infinita sabedoria de Gonzalo, questionou-o acerca da outra parte, o demónio. Pois se tinha Deus, tinha demónio, o entendimento era tácito. Gonzalo benzeu-se e tranquilizou-o acerca dos pesadelos que o interlocutor estava tendo. Na noite anterior, ardendo em febre, como se estivesse nas fornalhas do inferno, Luiz se debatera com os céus escuros e tormentosos, ar irrespirável e decomposição por toda a parte. Numa noite, parecera que viajara através dos tempos e devido a isso perdera a hora de se levantar e o ofício. Gonzalo o alertou para a necessidade de se confessar com o frei Carlo, que de repente era o demónio quem o estava tentando.

Foi ter com Carlo que pacientemente ouviu o relato, um tanto quanto futurista. “O diabo com as suas artimanhas”, pensou o confessor.

Não percam a terceira parte, porque nós também não!

Marcelo Pereira Rodrigues

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