Para irmos ao encontro do pensamento de Kant, imaginemos a seguinte cena: um indivíduo entra em sua casa esbaforido e assustado, afirmando que está sendo perseguido por um assassino que tenta matá-lo. Você sai assustado e, ainda tentando se recompor do susto e do inusitado da ocorrência, se depara com o perseguidor armado que te pergunta se por acaso viu o indivíduo fugitivo. Qual seria a sua decisão?
Este é o pano de fundo de uma discussão entre o filósofo francês de origem suíça Benjamin Constant (1767-1830) e o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), de quem já tratamos aqui, num artigo panorâmico. Para o filósofo de Königsberg, era ponto pacífico que o inquirido deveria falar a verdade, mesmo que isso ocasionasse a morte do perseguido. No campo moral, entendia o dever como princípio inquestionável e isso firmava o estatuto da verdade para além das conveniências e particularidades.

Por trás deste exemplo corriqueiro, observamos em Kant a luta contra a relativização da verdade, e isso traduzido para os dias atuais confronta “as mentiras brancas”; “Menti para você, mas foi sem querer”; “Eu omiti, mas não menti”; “Foi só uma mentirinha” e vai por aí afora.
Já explicamos aqui a contribuição de Kant para a Filosofia Especulativa Metafísica, sendo um dos pilares do todo da História da disciplina, agora vamos nos debruçar sobre a sua filosofia moral, que dará contributo ao Direito e à Política, estando esta última sempre subordinada às leis de comum acordo entre os homens, a partir do imperativo categórico, que preconiza o seguinte: “Aja de tal modo que a sua conduta se transforme em lei universal, pautado na verdade e em conformidade com o dever”.
Essa máxima universal pretendida, que nada mais é do que a máxima cristã de não fazer ao outro aquilo que não gostaria que fosse feito contigo, é que faria a excelência nas relações interpessoais, onde cada indivíduo estaria imbuído do espírito de lidar com um outro indivíduo como se fosse um fim, nunca um meio. Confronta diretamente o epíteto do pensador florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527), a de que “os fins justificam os meios”.

Mas, voltemos ao caso da perseguição: certamente, se fosse Kant o inquirido, ele responderia que sim, “o fugitivo está abrigado em minha casa”. A isso, Benjamin Constant aponta:
“O princípio moral que dizer a verdade é um dever, se fosse considerado incondicionalmente e isoladamente, tornaria impossível qualquer sociedade. Temos a prova disso nas consequências diretas que um filósofo alemão tirou desse princípio, chegando até mesmo a pretender que a mentira seria um crime em relação a um assassino que nos perguntasse se o nosso amigo, perseguido por eles, não está refugiado em nossa casa“.
Por mais humanitária que seja a intenção de Constant (que é aplicada no Direito até os dias atuais), parece não perceber a diretriz quase messiânica de Kant na sua proposição, o que levaria até a um determinismo. O autor da “Crítica da Razão Pura” respondeu que mesmo falando a verdade, os desdobramentos a seguir poderiam não se consumar no assassinato, uma vez que o perseguido ainda poderia fugir, a partir do momento em que percebesse o que lhe aguardava. E Kant ainda aventa uma equação que faz lembrar o lema: “A borboleta bate as asas e um terramoto acontece em um outro ponto” expresso na teoria do caos.
Vamos transpor para os dias atuais? Você não deu bolas a Kant e acreditando que estava salvando uma vida, disfarçou o perseguidor do mesmo modo que Pedro negou Jesus. Mas eis que, ato contínuo e sabedor que está a salvo, o perseguido lhe agradece, sai de sua residência e atravessa a avenida. Um tanto quanto distraído, não percebe a aproximação de um ónibus que o atropela e mata. Fatalidade? Que nada! Segundo Kant, você é responsável por esta morte, pois interferiu decisivamente na vida daquele infeliz.
Sendo a verdade a grande busca dos filósofos, sendo a verdade o conceito que Jesus de Nazaré não soube responder ao inquiridor e filósofo Pôncio Pilatos, e após Kant ela ter sido aventada e atrelada ao domínio daqueles que detêm o poder, em filósofos como Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Michel Foucault (1926-1984) que denunciaram esse utilitarismo moral e messiânico.

Chegamos aos dias atuais com a exacerbada lei do Relativismo, com o absurdo inclusive da pós-verdade, das famigeradas fake news e onde a mentira se apresenta em discursos políticos eleitoreiros, em relações de interesses que dificultam o exercício da amizade (pois os bons amigos compreendem os outros como se fossem ele próprio, e não como meio para determinada finalidade), toda essa degeneração nos faz questionar se de repente não estamos precisados de Kant nessa contemporaneidade.
Falar a verdade, nua e crua, e não a de conveniência. Reconheço em Kant o exacerbado moralista, ainda mais que somado à sua rigidez de conduta de vida, só faz-nos perceber a sua coerência entre o que era e o que professava. E vocês, o que responderiam ao perseguidor assassino? Com a palavra, a consciência dos leitores deste humilde texto…
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One thought on “Kant e a intransigência no trato com a verdade”