Se é verdade que uma das funções da arte é desafiar quem a experiência, é igualmente verdade que muitos não estão predispostos a assistir a filmes cujos temas são altamente perversos. Este é o caso da estreia do austríaco Markus Schleinzer, que partilhou a cadeira de realizador com Kathrin Resetarits para levar “Michael” a concorrer tanto à Palma de Ouro como à Câmara Dourada no Festival de Cannes em 2011. Não tendo sido premiado no festival, a obra deixou uma forte impressão pela ousadia de humanizar um monstro que tanto quanto sabemos podia ser o nosso vizinho do lado.
O argumento, assinado também por Schleinzer, conta a história convincente da vida doméstica de Michael (Michael Fuith), um pedófilo austríaco que mantém cativa numa cave uma criança de 10 anos chamada Wolfgang (David Rauchenberger). Durante o dia, Michael trabalha numa empresa enquanto comercial, tem algumas relações constrangedoras com colegas e chega a sair com eles de fim-de-semana. Não houvesse um certo grau de sociopatia no seu comportamento, ninguém diria que uma pessoa como ele tinha um segredo tão sombrio.
Ao contrário do escândalo da premissa, o filme não denota nenhuma cena de violência sexual entre as partes, por outro lado, evoca o poder da sugestão, deixando que a audiência monte o puzzle deste drama negro por si. Como isto é deixado claro logo nas primeiras cenas, a realização confere uma réstia de segurança no sentido em que a história não está interessada em chocar ou explorar ninguém para além do que é estritamente necessário.


Para Michael, Wolfgang cumpre um duplo papel: Filho e amante. O ênfase está inclusive nas refeições que partilham, no tempo que passam a ver televisão ou outras ocupações que estão no seio de qualquer relação saudável. Para lá do teor inegável dos abusos, está uma tentativa bem-sucedida de estabelecer um clima doentio de normalidade quando a situação é toda menos regular.
É uma jornada primariamente emocional. Às vezes cómica num tom obscuro, outras vezes dramática pelos comportamentos introspetivos do protagonista, assim como a sua comum falta de expressão. No entanto, por entre o silêncio de várias cenas, há momentos inesperados que provocam reacções de nítida surpresa. Estes reflexos confirmam o quão cativante “Michael” consegue ser enquanto peça que não pretende fazer juízos de valor. Tal como um documentário imparcial, o argumento limita-se a expor uma relação banal com um pano de fundo carregado de malvadez.
O filme é vagamente inspirado na história real de Elisabeth Fritzl, que foi mantida em cativeiro pelo seu pai durante 24 anos numa cave na Áustria, onde sofreu todos os abusos imagináveis. Schleinzer, que antes de realizar cumpriu um longo currículo enquanto diretor de casting, escolheu os intérpretes a dedo para narrar uma dinâmica sinistra entre um homem patológico e um pobre menino. Apesar de entreter através da curiosidade mórbida e da esperança de um desfecho jubiloso, é sobretudo uma chamada de atenção para o caráter traiçoeiro daquilo que aparenta ser ordinário.
Sim, a matéria-prima pode não ser uma fonte rica em satisfação e entusiasmo, mas a forma como é abordada confere-lhe os créditos suficientes para recomendar “Michael” mesmo a quem à partida não teria a predisposição para o absorver.
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