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O final e o início de cada ano é uma boa oportunidade para pensarmos a vida no tempo. A vida humana desenvolve-se nessa marcação dos acontecimentos a que chamamos tempo. Filosoficamente o tempo é uma categoria do entendimento. E entender o modo como o homem de hoje vive o tempo e no tempo é um assunto muito importante.

Esse tipo de preocupações trouxeram os filósofos desde que Immanuel Kant estabeleceu limites para os voos da razão e Martin Heidegger no clássico livro “Ser e Tempo” (1927) estreitou os contornos do nosso entendimento para pensar a realidade e o homem.

Eis como isso pode ser resumido (STEIN, E. A caminho de uma fundamentação pós-metafísica, 1997, p. 105): “Postos esses limites, não se pode mais responder a nenhuma dessas questões a que correspondem as três perguntas nas obras de Kant: a) que posso saber?, b) que devo fazer? e c) o que me é dado esperar? Kant explicou que para resolver essas questões era preciso primeiro responder à pergunta que é o homem?“. A ela os filósofos seguintes responderam: um ser que se faz no tempo e que se situa numa sociedade. Daí a pergunta: como anda a sociedade humana atualmente?

Para responder a ela vamos acompanhar dois pensadores fundamentais para tratar o assunto. O primeiro é Vilém Flusser, um checo de nascimento que viveu e pensou por mais de trinta anos o Brasil e no Brasil. Ele, como quase todos os filósofos desde o século passado, entendem que a humanidade mergulhou numa crise de cultura. Essa crise mostra-se, entre outras coisas, na forma de entender o tempo. O tempo hoje parece oco como foi a visão do tempo da sociedade barroca cujo vazio (FLUSSER, Pós-História, vinte instantâneo e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades,1983, p. 9): “ressoava nos seus passos (do homem barroco) debaixo do palco.”

O filósofo, jornalista, conferencista e escritor Vilém Flusser. Vilém fugiu para o Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e obteve cidadania brasileira.

Hoje esse vazio é, contudo, diferente, o vazio do tempo não é mais teatral. Debaixo dos nossos pés há outro tipo de vazio. É o vazio do criminoso que quer apagar o mal feito de cujo exemplo mais terrível foi o campo de Auschwitz. O campo de concentração representou a transformação do homem em coisa, em número (id., p. 11): “o inaudito em Auschwitz não é o assassinato em massa, não é o crime. É a reificação derradeira de pessoas em objetos uniformes, em cinza.

Isso aconteceu porque o nosso tempo quis funcionar como um aparelho que transforma o homem num objeto, retirando dele a sua singular humanidade. A sociedade olhou o homem como um funcionário de um aparelho que funciona conforme regras próprias. A isso nos trouxe a sociedade da comunicação, de massas e da media digital.

Se viemos para cá, o desafio que temos é o de superar o caminho torto da objetivação das pessoas que resultou de organizações sociais contemporâneas que se parecem a caixas-pretas. Essas organizações funcionam segundo uma programação que desumaniza e que, a partir de certo momento, escapa (id., p. 14): “ao controle dos seus programadores iniciais.” A crise de cultura tem um pano de fundo moral e emerge, porque (id., p. 15): “perdemos a fé na nossa cultura, no chão que pisamos; isto é, perdemos a fé em nós mesmos.” Então a transformação do homem em coisa promoveu a desconfiança de nós mesmos e da nossa capacidade em viver humanamente o futuro.

Assim como para Flusser, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset entendeu que a crise de hoje é inédita e de fundo moral, nunca houve outra semelhante na história, ela (id., p. 149): “é, (…), uma absoluta novidade.” Para ele, a razão dessa crise é que as massas perderam o desejo da excelência, do belo e do bom, que viam num pequeno grupo. Não mais admiram essa minoria esforçada que busca sempre o melhor de tudo (id., p. 151): “não as obedecem, não as seguem, não as respeitam, mas, pelo contrário, as deixam de lado e as suplantam.

O filósofo, ensaísta, jornalista e ativista político espanhol José Ortega y Gasset

Pode-se dizer que se rompeu o juízo de épocas mais tranquilas onde a sociedade vivia (PIMENTEL, 1998, p. 159): “num equilíbrio dinâmico sustentado pela exemplaridade da minoria seleta e pela obediência da massa dócil. Esse equilíbrio é o eixo sobre o qual se ergue toda a vida humana, seja a vida pessoal ou a vida histórica.

Ortega y Gasset convenceu-se que as propostas totalitárias, notadamente o nazi-fascismo que se espalhou pelo Ocidente e foi condenado por Flusser, era a resposta política desse tempo das massas. Esse é o mesmo movimento da extrema direita contemporânea, que reduz a autodisciplina e o autodesenvolvimento pessoais. Isso porque entrega a vida a um guia, um mito, um duce ou führer, mas essa entrega não retira da vida as suas características, isto é, (MARÍAS, 1991, p. 246): “o homem todo é inseguro e problemático.

E, assim procedendo, a massa vive nas redes sociais e na sua rotina, a ilusão vendida pela extrema direita de que resolverá todos os problemas humanos se o líder assumir todo o poder, mas essa irresponsabilidade pessoal não tira da vida o seu caráter problemático e ambíguo. Essa proposta reduz a excelência e a inteligência do horizonte vital e contribuí para o fortalecimento de uma hiper-democracia que é o governo das massas conduzida pela força de um guia. A novidade desse século em relação ao passado foi a aproximação dessa vertente política de setores religiosos que possuem características parecidas.

José Maurício de Carvalho

José Maurício de Carvalho – Departamento de Filosofia da UFSJ, é uma das maiores autoridades em filosofia de língua portuguesa e autor de mais de três dezenas de obras filosóficas. Doutorado em Filosofia, também é filósofo clínico e psicológico. Este texto está presente na edição 251 da Revista Conhece-te.

Obra de Bruce Nauman, “Life, Death, Love, Hate, Pleasure, Pain” (1983)

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