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Porque A Arte Somos Nós

Como é viver na Noruega? Costumes? Tradições? Cultura? Meio inimaginável aventar a possibilidade de residir lá por fora, mas lendo o denso universo do norueguês Karl Ove Knausgård, dá para se ter uma noção, adentrando um lar e as suas vicissitudes (em particular o seu pai). É que o autor escreve uma portentosa autobiografia, polémica por sinal, uma vez que se embrenha em detalhar as coisas da família, sem dó nem piedade. O colosso autobiográfico possui cerca de 3500 páginas. Traduzido no Brasil pela Companhia das Letras, o primeiro tomo saiu publicado com o título “A Morte do Pai”, mote desta crítica.

Temos aqui um problema de tradução, uma vez que esse colosso só será publicado aqui no Brasil aos poucos, mas fica uma ressalva pela dificuldade do idioma, e pode até servir de paliativo para irmos conhecendo a verve literária do seu autor. O colosso de 3500 páginas possui o provocativo título de “Minha Luta“, nada mais nada menos que o mesmo título da autobiografia de Adolf Hitler. Mas que fique bem claro, o autor não é nazista.

A análise crítica deste primeiro volume é para uma obra portentosa. Uma narrativa ágil e direta, em certos momentos dolorosas, verdadeiro soco no estômago ao destrinchar o relacionamento do seu autor com o pai e com a sua avó paterna. Do primeiro narra a sua decadência com o alcoolismo e a sua morte (como aventado no título), da segunda narra a senilidade e a incontinência urinária. De bastidores, esclarecer que vários membros da família tentaram impedir a publicação da saga, e obviamente muitos romperam com o escritor.

Deu para perceber uma certa verosimilhança entre este livro e o “Cartas a Meu Pai“, do tcheco Franz Kafka (1883-1924), que é um relato sufocado de um filho que se sentia oprimido pela figura paterna, sendo este livro publicado postumamente, pelo seu amigo e editor Max Brod.

Outra curiosidade é que o batismo da autobiografia de Karl Ove remete à nomeação de “Comédia Humana” por Honoré de Balzac (1799-1850), mas, pelo estilo, remete mais às memórias fotográficas e com riquezas de detalhes de Marcel Proust (1871-1922), no seu portentoso “Em Busca do Tempo Perdido“. Fazendo um adendo, beira ao tédio ler três ou mais páginas de Proust para descrever uma cena, tudo ao contrário do estilo económico de um Albert Camus (1913-1960), por exemplo, no sorumbático começo de “O Estrangeiro“. Cito: “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez, ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem“.

“O Estrangeiro”, Albert Camus
“Carta ao Pai”, Franz Kafka

Karl Ove não chega a ser irritantemente detalhista quanto Proust, nem tão sucinto quanto Camus. Fica no meio termo. Mas que a narrativa envolve, isso sim. Voltando ao início deste relato, a curiosidade de como se porta um norueguês no seu país fica satisfeita. Mesmo restrito a um lar apenas.

Certo tédio e o nada para se fazer de um adolescente (pois neste primeiro tomo o autor descreve a sua infância e adolescência) com as festas de final de ano, as primeiras paqueras, a sua emotividade exacerbada, pois aliado à timidez ele chora por diversos motivos. O café é sorvido constantemente, natural para uma região gelada do planeta e como não poderia deixar de ser, o peixe é o alimento mais consumido.

O autor, que vendeu 500 mil exemplares só na Noruega, foi alçado à condição de popstar da literatura, possuindo até jeito de líder de banda de rock, inspiração que veio da juventude quando chegou de facto a ter uma banda. Fica a sugestão para adentrarem no lar da família Knausgard, sem a necessidade de se bater à porta, pois o seu autor fez questão de escancarar a mesma e nos convidar a lidar com os seus dramas, seus anjos e demónios. Um primeiro volume admirável!

Tive a satisfação de assistir à sua palestra na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP, Brasil) no ano de 2017. Polémico como sempre, brincou que pensara no título de sua maçuda autobiografia sendo “Argentina”. Correlato a alguém estar em Óbidos e afirmar que pensara em algo como Espanha para um título. Provocação pura. Afirmou categoricamente que odiara o seu pai e depois, pacientemente, autografou todos os livros na extensa fila de fãs que buscaram a dedicatória, eu inclusive. Fez um K e um pontinho.

Marcelo Pereira Rodrigues com Karl Ove Knausgård

Um autor que vale a pena conhecer!

Marcelo Pereira Rodrigues

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