OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

Se não leram o capítulo anterior, podem encontrá-lo aqui!

Jurema acordou Brigitte. Não fazia sentido retornar ao antigo nome, até pela questão dos documentos. E, ademais, já criara esse status de relevância social e foi assim que se dirigiu ao maior jornal da cidade, na tentativa de encontrar um famoso colunista social. Levou duas horas para ser atendida, mas conseguiu o tão sonhado contato. Trocaram e-mails e Brigitte ficou de mandar uma foto de quando estivesse à frente da Torre Eiffel. Adamastor Zózimo sugeriu um lugar menos convencional, para causar mais impacto. Brigitte assentiu.

Uma da tarde no prédio de Gregório. O porteiro toca o interfone e anuncia a presença de dois senhores que desejavam falar com ele. Passou para Hamilton, que, afobado, pediu:

— Estou aqui com o editor Godofredo! Precisamos falar contigo. Por favor, nos receba! – havia alguma coisa de estranha em sua voz, o que amedrontou Gregório. Ele achou por bem descer e assim o fez, encontrando um editor com cara de pidão e um Hamilton inconsolável, anunciando:

— Gregório! Seu Gregório! Ocorreu-me uma desgraça!

— O que foi? – preocupou-se mais Gregório.

— Perdi um milhão e quatrocentos.

— Como assim?

Atabalhoadamente, sacou do bolso um volante da Loteca e desdobrando-o, gaguejou:

— Como sempre faço, no último sábado saí para fazer o meu jogo. Ah, seu Gregório! Que merda! Estava na fila dando uma última conferida e aí, quando chegou a minha vez, o sistema saiu do ar. O sistema saiu do ar! Acredita nisso? Esperei. Esperei. Quando fui ver, as funcionárias da lotérica já estavam fechando as portas, tentei ir a uma outra, mas passava já das duas da tarde. É a hora em que se encerram as apostas. Merda! Puta que pariu. Desisti. Pelo menos, economizaria vinte e quatro reais. E sabe o que aconteceu?

— Você acertou os 14 pontos – percebeu o óbvio Gregório.

— Isso mesmo! Antes de encontrar com o editor, que aqui está, passei na lotérica para ver o rateio. Um milhão e quatrocentos! Um milhão e quatrocentos, porra! E eu perdi pelo fato de a porra do sistema ficar fora do ar.

O editor bateu as mãos em suas costas, confortando-o. Gregório ficou verdadeiramente compadecido pelo desafortunado, mas, ao mesmo tempo sabia que, caso ele tivesse efetivado a aposta, nesse momento estaria na Caixa Económica Federal para buscar o seu prémio e não ali. Gregório se desculpou com o editor pelo xingamento na noite anterior. O editor foi condescendente.  Rumaram para o Shopping Cidade e sentaram-se no Mr. Black. O editor iniciou:

— Senhor Gregório! Preciso de você no jornal.

— Então, eu gosto de escrever. Mas pelo que tenho visto, não estou agradando.

— Pior é que está. Seus textos polémicos e apimentados chamam a atenção. Uma senhora chegou a me dizer que, se o encontrasse, bateria com a bengala na sua cabeça. Devo admitir que você causa desconforto, mas, pensando bem, acho que isso é positivo. Quero continuar com a sua coluna.

Ao lado, Hamilton afundava a cabeça no peito e chorava, chamando a maior atenção. O editor pediu compostura, deu outro tapa em suas costas e sugeriu que ele continuasse a jogar; afinal, ele demonstrara ser um excelente apostador.

— Sabe o motivo de eu ter marcado corretamente os 14 pontos? Joguei em duas zebras, uma delas a do Santa Cruz de Recife vencer o Atlético Mineiro no Independência e marquei um triplo num jogo que também deu zebra: o Fortaleza perdeu para o ASA de Arapiraca em casa. E essa merda do sistema fora do ar! Puta merda!

— Acalme-se, senhor Hamilton! Acalme-se! – e virando-se para Gregório – Então, o que me diz? Podemos deixar o dito pelo não dito? Posso publicar os seus textos?

— Pode. E sinto muito pelo descontrole ontem. Tenho passado dias difíceis.

— Quer desabafar?

— Uma aluna minha cometeu suicídio.

— Ah, então está explicado. Por isso o seu escrito “Suicídio Entre Adolescentes”. Como ela se matou?

— Prefiro não estender. Ficamos assim.

Hamilton levantou a cabeça com os olhos marejados e, ao ouvir suicídio, pensou se não seria uma alternativa. Abaixou novamente a cabeça e, agora sim, chorava copiosamente.

Gregório e Godofredo ficaram sem ação. Por mais discretos que tentassem ser, a cena chamava a atenção. Passado algum tempo e o desafortunado se recompôs. Gregório quis saber detalhes do jornal, quantos leitores tinham, qual era o público-alvo e, como sempre ocorre com editores de jornais pequenos, as estimativas são sempre jogados para cima. Como pensam que cada jornal se transforma em cinco leituras (na média), o editor afirmou mil e quinhentas pessoas, e Gregório soube que pouco mais de trezentas pessoas tinham acesso ao semanário. O editor sonhava;

— Quero formar um belo time de colunistas no O Vigilante!, você Gregório, já é um desses! Tenho percebido que a palavra cruzada foi uma boa e os informes de aniversários no jornal são excelentes, pois propicia uma maior interação com os moradores do bairro. Consegui um patrocínio grande de uma empresa de revendedores de automóveis, mas estou com uma pendenga para resolver: devo admitir, Gregório – abaixando a voz – não possuo firma registada. Os putos exigem nota, estou tentando ver o que faço.

Gregório perguntou o óbvio: se ele não intentava criar uma empresa.

— A coisa tá brava, Gregório! Mal dá para pagar os custos gráficos. Nem escritório tenho, trabalho em casa mesmo. Isso para conter os custos. Mas a coisa tá feia, isso devo dizer.

— Se eu tivesse ganhado a porra do jogo, te compraria o maior jornal de Minas – bufou Hamilton.

E ficaram nessa conversa fora, e Gregório se compadeceu verdadeiramente de Hamilton, que se recompôs e pediu:

— Quero te pedir que faça um anúncio de página inteira do seu livro.

— Não tenho dinheiro.

— Senhor Gregório – interveio o editor com todo o tato possível – veja bem, não entro nesse departamento publicitário. Faço apenas o editorial e intento vender as assinaturas. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

— Então, Hamilton? Quanto seria? – perguntou Gregório.

— Nada que passe de oitocentos reais – falou Hamilton e, ao relacionar o valor, lembrou-se com amargura dos um milhão e quatrocentos perdidos.

Gregório ia dizer não. Quase disse não. Mas sacou sua carteira, preencheu o cheque e passou a Hamilton. Muito abatido ainda, este agradeceu:

— Vou fazer o recibo.

— Não precisa.

Tentando ser o mais solícito já na pré-venda, editor e Hamilton sugeriram dizeres para tentar fisgar o leitor no anúncio de página. O editor falou:

— Sairá na última página. Te darei essa primazia. Pois, além da primeira página, o que as pessoas lêem é a última, isso quando pegam o jornal. Seu livro fala de quê mesmo?

— Filosofia. Comportamento. Cultura.

— Tipo as coisas que você escreve para o jornal, né?

— Sim, isso mesmo! – respondeu sem empolgação.

— Vou montar alguns dizeres e te envio de véspera, para a sua aprovação: “O livro do ano!”; “O livro que irá mudar a sua vida!”.

— Pode ser um pouquinho mais subtil – sugeriu o escritor.

Hamilton não mais prestava atenção. Pediu a conta e, quando esta chegou, entregou-a a Gregório: — Desculpe-me, mas perdi um milhão e quatrocentos.

— Ou setecentos mil – corrigiu Gregório.

— Como assim?

— Houve quantos vencedores?

— Dos 14 pontos, apenas um. Um que acertou e não teve a infelicidade de na porra da sua lotérica o maldito sistema da puta que pariu ter ido para o saco nessa merda de cidade fedorenta.

— Então, se você tivesse confirmado o jogo, teria ganhado a metade de um milhão e quatrocentos, portanto, setecentos.

— É, o senhor é bom nas contas – surpreendeu-se o editor.

Hamilton não parecia muito animado. Mas reconfortou-se ao saber que perdera menos de um milhão. O editor pediu sugestões a Gregório sobre possíveis colunistas. Lembrando-se ainda do lançamento, sugeriu Joel, um filósofo abstrato que lia os clássicos; Juliana que era uma ferrenha defensora dos animais; e analisando rapidamente os perfis dos dois interlocutores e o alcance reduzido do jornal, descartou sugerir uma pauta que informasse sobre o LGBT e o movimento de consciência negra. Mas sugeriu o nome de Arthur, o leitor voraz de Proust, Balzac e Stendhal. O editor pediu contato, Gregório passou e afirmou que poderia usar o seu nome como intermediador. Despediram-se e Hamilton saiu com essa:

— Pobre nasceu é para tomar ferro mesmo. Porra de sistema fora do ar. Com setecentos mil, sairia do barracão onde moro e compraria um apartamento aqui no centro, e mais um automóvel. Puta merda!

Despediram-se e Gregório se dirigiu à Leitura, para arrefecer um pouco. A seguir, pegou um cineminha.

Stendhal

Juliana decidira virar vegetariana. Fora convencida pelo argumento que pregava o seguinte: “Se você gosta de bicho, por que come uns em detrimento a outros?”. O argumento fora convincente. Havia mais de duas semanas estava nessa dieta, travando, ao mesmo tempo, batalha com a prefeitura e a carrocinha dos cães. Aludia ao nazismo para comparar o tipo de tratamento que era dado aos animais desabrigados e colhia assinaturas, assinaturas e assinaturas. Com a mochila cheia de ração, visitava bairros e distribuía comida, batendo interfones e sendo despachada rapidamente quando, pelo interfone mesmo, sugeria aos moradores comparem comida para os cães abandonados. Era xiita, fanática mesmo. Num bairro, chegou a ser atacada por uma matilha quando sacou o saco de ração da mochila. Pobres coitados, estavam esfomeados! Não percebia, mas de tanto olhar para cães de rua, estava impregnada de um cheiro estranho e que denotava pouco asseio em suas roupas e cabelos. Era como Anthony Hopkins em “Instinto“. Foi quando recebeu a ligação do editor, convidando-a assinar uma coluna. Desprovida de vaidade, disse sim na mesma hora antevendo mais um espaço para divulgar o seu trabalho. Bem, deixemos por ora os bichos e voltemos a falar de pessoas. Aqui, não discriminamos Juliana. Apenas oferecemos a ela um elogio fiel à sua natureza.

Nicodemos saiu da aula do cursinho de Inglês conversando sobre o estrangeiro com dois de seus alunos. Amparado pelos guias que lera, falava de lugares o que tinha visitado em Londres (sim, passara pela faixa de pedestres onde os Beatles tiraram a famosa foto), pelos pubs e pelas cervejas de excelente qualidade; falara de “Notting Hill” e, para tanto, se valera do filme com Julia Roberts e Hugh Grant; falara de como era bom falar inglês com os locais e de como a libra valia, “muito mais que o euro, muito mais do que o dólar, muito, mas muito, mas muito mais que o nosso surrado real”, e ia gastando nas descrições das visitas que fizera ao redor do mundo. Tinha jargões para definir tudo: na Itália, Milão era a capital da moda, Roma era conhecida pelo trânsito infernal e Nápoles era muito suja, mas esses problemas não afetavam a beleza e a organização do país. Da França, o seu chavão ia para as orientações de comprar bilhetes para várias visitas ao Louvre: “É coisa de pobre isso de visitar o Louvre em apenas um dia. Isso porque mal dá para ver todos os quadros, as exposições. O ideal é comprar para vários dias e, ao final da tarde, refestelar-se ali”. E na Holanda vocês precisam ver como são belas as tulipas; as pessoas andam de bicicletas numa Amesterdão que é bem plana e, na República Checa, há o Museu Kafka. Nico não percebia o ridículo da sua condição, pois não foram raras às vezes em que um aluno, sem maldades, questionar: “Por que então você não se muda para lá?!”. E quando foi solicitado a mostrar as fotos que fizera nos locais, saiu-se bem com essa: “Na verdade, minha namorada era a responsável pelas fotos. Sabem? Brigamos feio. Sua vingança foi me mandar uma mensagem de texto afirmando que havia apagado todos os meus registros. E olha que eu nem cheguei a postar nada. Aquela maldita vaca!”.

Julia Roberts e Hugh Grant em “Notting Hill” (1999)

Gregório retornou ao apartamento. Prepararia os planos de aula e assim se refugiaria do alarido da cidade grande. Imerso em correções de provas e redações, abriu a geladeira, bebeu um suco de goiaba e, a seguir recompensou-se abrindo o livro que lhe fora deixado de espólio por Carla. Leu Nietzsche:

“Ó! Soledade! Pátria minha! Vivi muito tempo selvagem em selvagens países estranhos para não regressar a ti sem lágrimas! Ameaça-me agora com o dedo, como uma mãe, sorri-me como sorri uma mãe, e diz somente: ‘Quem foi que em tempos fugiu do meu lado como um torvelinho? Aquele que ao retirar-se exclamou: Demasiado tempo fiz companhia à soledade; esqueci então o silêncio? Foi isso, sem dúvida, o que ora aprendeste? Ó! Zaratustra! Sei tudo! E sei que tu, irmão, te sentias mais abandonado entre a multidão do que jamais estiveste comigo. Uma coisa é o abandono, e outro a soledade; eis o que aprendeste agora! Que entre os homens serás sempre selvagem e estranho mesmo que te amem; porque, primeiro que tudo querem que se lhes guarde consideração. Aqui, porém, estás na tua pátria e na tua casa; podes aqui dizer tudo e espraiar-te completamente: aqui ninguém se envergonha de sentimentos ocultos e tenazes. Aqui todas as coisas se aproximam da tua palavra com carícias e te animam: porque te querem subir ao ombro. Montado em todos os símbolos, cavalgas aqui para todas as verdades. Aqui podes falar a todas as coisas com retidão e franqueza e, na verdade, tudo o que se lhes fale com retidão lhes soa como um elogio. O abandono é muito diferente. Recordas-te, Zaratustra? Quando a tua ave se pôs a gritar por cima de ti, estando tu no bosque, indeciso, sem saber para onde ir, ao lado de um cadáver, quando dizias: ‘Guiem-me os meus animais! Encontrei mais perigo entre os homens do que entre os animais’. Aquilo era abandono”.

Marcelo Pereira Rodrigues

Leave a Reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: