Após 20 anos de carreira, tendo publicado 12 livros, é certo que recebo pedidos de aconselhamento no que toca à vida literária. Não à toa, sou sócio de uma agência literária que, profissionalmente, tenta encaminhar originais e manuscritos a importantes editoras, na tentativa de vir a ser um livro. Com um pouco de cabelo branco e no alto dos meus 46 anos, sinto-me um eterno aprendiz e, lado outro, leio e aconselho-me com gente mais experiente do que eu.
Faço este preâmbulo para aludir a “Cartas A Um Jovem Poeta”, um clássico da literatura epistolar, publicado por Franz Xaver Kappus com as correspondências que lhe foram destinadas pelo poeta checo-alemão Rainer Maria Rilke (1875-1926), ele que foi secretário de Auguste Rodin (1840-1917). Kappus publicou as 10 cartas escritas por Rilke, mas não publicou as destinada a ele. Do exemplar que tenho em mãos, da Editora Globo, consta também “A Canção De Amor E De Morte Do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke”. Este sim, da autoria de Rilke. O conjunto do livro conta com 109 páginas.

Como as epístolas foram publicadas após a morte de Rilke, não sei qual seria o seu sentimento ao saber que aqueles registos se tornariam públicos. De vida reservada e sério no seu ofício de escritor, o poeta checo-alemão tinha em mente que o ofício de um escritor seria o de trabalhar o texto exaustivamente, sem ligar em demasia aos críticos literários, e combatia a pressa da publicação. Aliás, por vezes também penso dessa forma: quanto mais se publica, mais se perde na qualidade daquilo que não foi devidamente esmerado, sofrido e sentido. Mas deixemos o próprio nos orientar, acerca do aconselhamento que faz sobre obras imprescindíveis para se tornar um escritor, cito:
“Um mundo se abrirá aos seus olhos: a felicidade, a riqueza, a inconcebível grandeza de um mundo. Viva nesses livros um momento, aprenda nesses livros um momento, aprenda neles o que lhe parecer digno de ser aprendido, mas, antes de tudo, ame-os. Este amor ser-lhe-á retribuído milhares de vezes e, como quer que se torne a sua vida, ele passará a fazer parte, estou certo, do tecido do seu ser, como uma das fibras mais importantes, no meio das suas experiências, desilusões e alegrias.
Se eu tivesse de confessar com quem aprendi alguma coisa acerca da essência do processo criador, a sua profundidade e eternidade, só poderia indicar dois nomes: o de Jacobsen, este poeta máximo, e o de Auguste Rodin, o escultor que não tem igual entre todos os artistas dos nossos dias.“
Rilke não se atém aos conselhos literários. Mesmo discreto, em certas passagens percebemos o desconforto que lhe causa os compromissos públicos, reclama do cansaço e faz a elegia do amor sublime, sendo tudo isso combustível para as suas composições. As missivas endereçadas a Kappus são de Paris, Viareggio perto de Pisa (Itália), Worpswede perto de Bremen (Alemanha), Roma, Borgeby Gard, Flãdie (Suécia) e Furuborg, Jonsered (Suécia), o que atesta o caráter viajado do artista.

Aqui cabe uma explicação: muito se discute se o ofício de escritor se traduz numa obra de arte e, sem querer puxar a brasa à minha sardinha, digo que sim. Claro que sinto que ainda estou a trabalhar para isso, mas como não chamar “A Montanha Mágica“, de Thomas Mann; “Os Irmãos Karamazov“, de Dostoiévski e “A Peste“, de Albert Camus, de obras de arte? Rilke leva isso muito a sério, e como se estivesse a esculpir o mármore no seu ofício revela:
“Ser artista não significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a árvore que não apressa a sua seiva e enfrenta tranquila as tempestades da primavera, sem medo de que depois dela não venha nenhum verão. O verão há de vir. Mas virá só para os pacientes, que aguardam num grande silêncio intrépido, como se diante deles estivesse a eternidade. Aprendo-o diariamente, no meio de dores a que sou agradecido: a paciência é tudo.“
Dado o enorme sucesso que foi a obra, o mercado editorial no século XX apostou e forçou inclusive a publicação de algumas cartas, sendo que o mercado editorial brasileiro apostou recentemente em filões tais “Cartas a um jovem advogado”; “Cartas a um jovem psicanalista”; e vai por aí afora. Mas percebemos o óbvio: tudo aquilo que é forçado perde a espontaneidade e neste momento fico a perguntar-me se os e-mails que trocamos atualmente com os amigos serão um dia publicados sem o nosso consentimento, após o nosso falecimento.
Mas também que diferença faz, não é? Já não estaremos aqui para nos incomodarmos. Ainda sou de um tempo em que escrevíamos cartas à mão e há uns 10 anos uma ex-namorada mostrou-me algumas delas, que na juventude eu as havia enviado. Quem sabe, indiretamente, não estava nascendo ali o escritor?
Findo com mais um sábio conselho de Rilke:
“Com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas no seu coração solitário, medroso e palpitante, devem aprender a amar. Mas a aprendizagem é sempre uma longa clausura. Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa.
Que sentido teria, com efeito, a união com algo não esclarecido, inacabado, dependente? O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo em si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser; é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe.“
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