“Então você realmente gosta do trabalho de Dahlberg Stint. Esqueci-me que a edição que contém o texto dele estava entre as que lhe mandei. Sinto muito, no entanto, não lhe poder mandar mais nada – a história que você leu é a única coisa dele que publicamos, ou que alguém já publicou, pelo que sei. Você tem razão – é uma coisa intensa, embora eu não fosse tão longe a ponto de chamá-lo de génio incrível. Atualmente, penso nele mais como um caso triste.
O que ele nos tem enviado das últimas vezes é tão mau que alguns de nós estão convencidos de que não pode ter sido ele quem escreveu aquelas histórias sobre a loja de ferragens. É claro, adoraríamos descobrir quem é o verdadeiro autor, mas hesitamos em perguntar isso ao próprio Stint, pois ele parece ser apenas medianamente equilibrado da cabeça.“
Trecho do livro
O que é de facto ser um escritor? Algum ofício artístico mais glamourizado ou apenas um ofício como o de qualquer um? Indícios desta questão estão contidas no livro “Cartas de um escritor solitário” (Editora Planeta, 2009, 223 páginas), de Sam Savage, autor norte-americano que fez um doutoramento em Filosofia pela Universidade de Yale, onde foi professor. Curiosamente, na vida trabalhou como mecânico de bicicletas, carpinteiro, tipógrafo e pescador. Mas conhecendo o seu irreverente estilo de escrever, penso que o ofício de escritor é o que o definirá com mais propriedade.
Neste livro, ele assume a faceta de Andrew Whittaker, um impaciente editor de uma revista literária decadente, a Sabonete. Mas essa não é a sua principal atividade. Ele é síndico de um prédio também decadente e vê-se às voltas com comunicados, prestações de contas, pequenos e grandes reparos e a sua ironia (não tão fina) assim se sobressai nos bilhetes que escreve aos inquilinos. E isso é que é o diferencial do livro. À medida em que vamos lendo, inteiramo-nos de pequenos reparos, listas de compras de supermercado e isso aproxima-se muito das nossas atividades mais corriqueiras.

Responde aos poucos leitores e dá para sentir que é bastante crítico com os textos que recebe dos seus colaboradores. Declina educadamente numa primeira resposta e ironiza após a insistência. Acredito que na função de editor, eu e o editor do Barrete sintamos na pele essas comunicações por vezes engraçadas e oportunistas. Num dos trechos de correspondência que envia à senhorita Moss, descreve:
“Quanto ao seu desejo de me mandar mais escritos seus, mesmo que não seja para publicação, não tenho muito como dizer não nessas circunstâncias. No entanto, deve lembrar-se de que sou uma pessoa muito ocupada, até mesmo sobrecarregada, e neste exato momento estou a atravessar sérias dificuldades financeiras, e ainda por cima mudando de casa, forçado, na verdade, por um acúmulo de coisas, por isso não posso prometer mais do que algumas rápidas anotações nas margens, apenas aquilo que me vier à mente enquanto for lendo. E, por favor, não deixe de incluir um envelope selado para a resposta.“
A condição de solitário proposta na obra revela aquilo que nós escritores por vezes sentimos. Geralmente ensimesmados, habitamos outros mundos ficcionais e quando a dura realidade bate à porta, sinto que é mister resguardarmos os nossos dissabores e não descarregarmos em interlocutores que, na maioria das vezes, não estão nem aí para os nossos sentimentos e deceções. Isso é geral, pois neste mundo onde a comunicação para muitos é apenas “eu falar e você escutar”, a verdade é que há muito estamos numa conversa de surdos decididos.
Vamos dar uma espreitadela nos itens de compras do protagonista? Cito:
“batatas (muitas)
latas (pimenta, sopas, feijão Big John)
linguiça de fígado
margarina
músculo
bolinhos
tortinhas doces
talvez carne
bisteca de porco
graxa de sapato
atum
sardinhas
salgadinhos de queijo
batata frita congelada – cupons
coisas para o almoço
pão
cereais
p. h. 6 (muito)
maionese
lâmpadas
ordens de pagamento
válvula de ½
vodca
protetor auricular.“
E seguem cartas educadas de recusa a textos ruins, onde assina Os Editores da Sabonete, como se a revista fosse uma empresa com departamentos e salas divididas com secretárias e ares condicionados.
Escrito em forma de diário, o livro tem tiradas engraçadíssimas, diálogos entrecortados e reflexões filosóficas e sociais desconcertantes. Um personagem que de tão rabugento agrada-nos, nessa autenticidade de quem já entendeu que ultimamente o mundo está um lugar difícil para se viver. As paisagens até que são bonitas, mas conviver com idiotas na sua quase totalidade desgasta-nos o fígado e leva-nos à impaciência. Lendo este diário, fiquei feliz ao saber que não estou sozinho neste mundo, agora só me resta arranjar um prédio em ruínas para administrar.
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