“Se nos cai nas mãos um volume, por exemplo, de teologia ou de metafísica escolástica, perguntamo-nos: contém alguma argumentação abstrata sobre a quantidade ou os números? Não. Contém alguma argumentação experimental sobre questões de facto e existência? Não. Então, que seja jogado ao fogo, pois contém apenas sofismas e ilusões”
David Hume (1711-1776) foi um filósofo britânico nascido na Escócia, um dos pilares do Empirismo inglês, que ao lado de John Locke (de quem já tratamos aqui) rompeu com uma tradição metafísica da filosofia apresentada no Continente europeu. Pensador arguto e homem que inferia nas questões práticas da sua época, não lecionou de forma oficial, ainda para mais as suas ideias, tidas como ousadas pelas autoridades religiosas à época, não coadunavam com a sua forma libertária de se expressar.
Hume radicalizou em muitos aspetos o Empirismo de Locke e, ao lado de George Berkeley (1685-1753), formaram o trio que sustentou essa corrente filosófica importantíssima para a História da Filosofia.
Lembramo-nos do contexto histórico, da corrente racionalista cartesiana que impregnava o pensamento de então, sendo um avanço aos dogmas da fé que perderam o seu esplendor com o Renascimento europeu, etc. A metafísica de René Descartes (de quem já tratamos aqui) aponta para o império da razão, a partir do Cogito, mas confere às ideias inatas aquilo que significa que o homem, ao nascer, já é dotado de atributos a priori.
Esse inatismo permanece até ao rompimento de empiristas na Grã-Bretanha, bem associado com os métodos científicos dedutivos e indutivos, daí a experimentação em tudo e de tudo para somente a partir daí surgir o conhecimento. Conhecimento das coisas que posso auferir, ver, sentir e o pensamento deriva de todas essas etapas. Não nos esqueçamos da ideia de tabula rasa de Locke, que expressa bem isso.

O empirismo é isso: um exemplo bastante atual é quando os cientistas da nossa atualidade batalham para a descoberta da vacina contra a Covid-19. Já perceberam os métodos? Nada é dogmático, tudo se traduz em tentativas e erros, tentativas e erros, tentativas e erros (estimado leitor, a repetição é proposital), vislumbrando uma etapa de tentativas e acertos. Já perceberam que os cientistas não se arvoram a donos do saber, nem se atribuem a ter o elixir da longa vida que salvará a humanidade? Pois é assim mesmo, toda a tentativa pode se mostrar vã, mas a continuidade e a esperança são atributos importantes desta profissão tenaz.
Voltando, a evolução dos métodos científicos no século XVIII proporcionou essa profunda investigação, e na maioria das vezes as divagações filosóficas, as teorias metafísicas (“Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?”) foram solenemente deixadas de lado, pois as pessoas queriam um saber que fosse mais prático e que inferisse na sua vida diretamente. Um exemplo prático: se eu precisar de me deslocar do Porto para Lisboa de comboio, o meu saber prático procurará saber os horários das partidas e chegadas. Esse saber útil e prático é o que pretende Hume.
Hume estuda e analisa todas as experiências na sua esfera do saber. Refuta de todo a Metafísica e chega a ser malcriado com ela, e com os seus adeptos. Afirma solenemente que muitos estavam ‘dormindo’ o seu sono dogmático e que a filosofia de até então cativava os seus mitos e as suas superstições. Devia entender como contos da carochinha as fábulas e as regras de moral advindas da tradição filosófica até à sua época. Desdenhava desse conhecimento amorfo, sem sentido e pomposo. Queria pôr as mãos na massa, verificar o mundo pelas perceções, pelos sentidos e pela investigação. Simples assim.
Obviamente que essas ideias não poderiam agradar ao clero, a alguns intelectuais enrustidos que se arvoravam a filósofos importantes e, como sempre ocorre com aqueles que pensam diferente da manada, sofreu alguns reveses, mas nada que abalasse as ideias do nosso Hume.
O seu entendimento acerca das perceções, ideias e sensações era tão ousado que entendia que não poderíamos ter a certeza de que o Sol apareceria no dia seguinte. Um dogmático poderia dar como certeza este facto, se afirmasse através da sua própria experiência, imagine se fosse eu este observador, eu afirmaria: “Tenho a certeza de que com 46 anos já vi o Sol nascer todo santo dia. Somado a isso, temos milhões de anos e os cientistas já atestaram a Idade do planeta Terra e, durante todo este tempo, o Sol apareceu. Assim sendo, posso afirmar categoricamente que o Astro Rei aparecerá amanhã“.
Nada mais equivocado segundo Hume. Pois amanhã é o novo, aquilo que ainda não me foi dado e apresentado, de forma que quando o despertador tocar e eu abrir as cortinas e perceber o breu, aí sim irei auferir que naquele dia, naquele momento, o Sol não apareceu (“Será que está ocorrendo uma hecatombe nuclear?”). Este exemplo um tanto drástico é para dar a ideia da importância da experiência e da observação para os empiristas.

O legado de Hume para a História da Filosofia é gigantesco: sendo um dos pilares que contrapôs a Metafísica de Descartes, foi admirado por Immanuel Kant, de quem já tratamos aqui, que afirmou categoricamente que “Hume o havia despertado de um sono dogmático”. O empirismo inglês permitiu a Kant realizar a sua síntese, a partir de duas excelentes obras que são basilares na Filosofia: “Crítica da Razão Pura” e “Crítica da Razão Prática“.
A genialidade do filósofo de Konisberg foi pegar em elementos das teorias racionalistas cartesianas e das teses empiristas britânicas e apontar que ambas estavam certas, ambas estavam equivocadas, e que no cerne havia aquela ideia tão aventada acerca dos limites do conhecimento humano.
A sua principal obra foi o “Ensaio Sobre o Entendimento Humano“. Lembro-me de um caso engraçado quando era estudante de Filosofia na Universidade Federal de São João Del-Rey (UFSJ), Brasil, e tinha as aulas com a excelente professora Marilúzi Ferreira sobre Hume. Quando ela nos contava que o britânico era irracional, custou-me a entender que ela não o estava xingando, mas apenas advertindo que ele não comungava das teses racionalistas de até então. Um filósofo interessante e que contribuiu muito para a quebra dos dogmas na sua época e, através do seu legado, para a nossa contemporaneidade também.
“Cada um admitirá prontamente que há uma diferença considerável entre as perceções do espírito quando uma pessoa sente a dor do calor excessivo ou o prazer do calor moderado, e quando depois recorda na sua memória esta sensação ou a antecipa por meio da sua imaginação. Estas faculdades podem imitar ou copiar as perceções dos sentidos, porém nunca podem alcançar integralmente a força e a vivacidade da sensação original“
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