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Porque A Arte Somos Nós

Arthur projetou, batalhou, divulgou e promoveu o seu primeiro café filosófico. No Pátio Savassi, na Leitura, ficou ansioso e na expectativa para a chegada do público naquele primeiro evento. Gregório foi o primeiro a chegar. Andreia chegou com um acompanhante, que vieram a saber depois, era o seu namorado oriundo do encaminhamento do pastor. Ela parecia feliz. Três estudantes do curso de Letras da sala de Arthur chegaram e também o seu pai, sua mãe e uma irmã. Visivelmente nervoso, pois falar em público era bem mais complicado que simplesmente ler os clássicos universais, Arthur começou:

— Bom dia, obrigado por terem vindo! Estamos aqui hoje para iniciarmos aquilo que pretende ser um café filosófico quinzenal, discutiremos grandes obras da literatura universal e filosofia e iremos fazer um paralelo com a nossa atualidade. E temos aqui hoje a presença de Gregório Mendes, importante filósofo e que acaba de voltar de Lisboa e de lançar “Provocações Filosóficas De Um Pensador Atualizado Com As Coisas do Mundo”. – os olhares foram para Gregório que modestamente, não se deu muita importância. Foi instado a falar de Portugal pelo palestrante.

— Bem, nada de mais minha viagem a Lisboa. Fui a trabalho. E acerca do livro, ele está sendo distribuído, mas encontra-se também nessa livraria para aquisição. Mas são reflexões simples. O protagonismo do dia hoje é do Arthur.

— Bem, quero dar um depoimento – interrompeu Andreia, levantando-se.

— Pois não – assentiu Arthur.

— Tenho as respostas a todos vocês. Quero dar um testemunho. Encontrei Jesus. Encontrei o amor. Encontrei a felicidade. Eu era uma pessoa sofrida. Perdi a minha mãe que morreu de falência múltipla dos órgãos. Arrependi-me de não ter feito as pazes com ela a tempo. Foi uma longa caminhada. Não me perdoava. Me martirizava. Sofri com uma casquinha na cabeça, no cocoruto da cabeça, que me acompanhou durante longos oito anos. Fiquei depressiva. Procurei apoio psicológico. Nada! Procurei apoio com o psiquiatra. Nada! Fui a um dermatologista. Nada! Comecei a ler livros de auto-ajuda. Nada! Conheci por acaso o trabalho do Gregório, cheguei a me interessar a princípio, mas depois descobri, desculpe-me a franqueza, professor – virando-se para Gregório – que os seus escritos não estavam com nada. Coisas para fazer pensar. E eu quero lá ficar pensando? Eu queria era ter a cura e somente consegui entrando para uma igreja evangélica. Com poucos conselhos, o pastor me salvou. E hoje estou muito feliz com o meu novo amor. E a ferida se cicatrizou. Não coço mais a cabeça.

— Obrigado por ter as respostas. Mas aqui vamos tentar formular mais perguntas – observou Arthur.

— Acho isso tudo uma bobeira. Vocês perdem tempo. Seria muito mais fácil se vocês todos fossem à igreja. Qualquer culto lá é lotado de pessoas, e todas saem satisfeitas do culto.

— Mas, voltando ao tema, nossa intenção é discutir os clássicos e hoje iremos aventar à importância de se ler os clássicos: Balzac, Flaubert, Dostoievski, Zola

Gustave Flaubert

— Estão vendo? – interrompeu Andreia – observem bem, aqui estamos apenas nós, gatos pingados. As pessoas querem é respostas prontas, não questionamentos para ficar martelando nas ideias.

O namorado interveio, desculpou-se e pediu para que Arthur continuasse. Ele agradeceu o aparte e retomou:

— A verdade, meus amigos, é que nunca se leu tanto quanto hoje. Observem bem o tamanho dessa livraria. Está aqui o nosso professor que pode atestar, Gregório, você que leciona para adolescentes, não é verdade que os jovens estão lendo livros grossos?

— Sim.

— Observaram? Mas fico cá com os meus questionamentos. O romance foi tido como próprio da burguesia, imaginem, no século XVIII, sem luz elétrica, computadores, televisões, rádios; fora o convívio social as pessoas, além de suas tarefas e compromissos pessoais e familiares, tinham apenas a leitura como possibilidade para divertimento. Muitas dessas histórias clássicas foram publicadas primeiramente em jornais e só depois os próprios escritores, ou pelo menos a grande maioria, bancava do próprio bolso as publicações em livros. Foi assim o caso de Balzac, que chegou a ter a própria gráfica.

— E o que isso tem a ver? – interrompeu mais uma vez Andreia.

— Xi… – levou o dedo nos lábios e fez o gesto para que a namorada parasse…

— Bem – tornou Arthur – podemos aventar primeiramente que as pessoas, pelo menos as alfabetizadas, tinham mais tempo para ler. E a pergunta que fica hoje é a seguinte: como conseguir tempo para ler “Os Irmãos Karamazov” e as suas mais de mil páginas?

— Por que não leem a “Bíblia“? – Andreia interrompeu mais uma vez.

Foi a deixa para a irmã de Arthur, Lorena, 18 anos, explodir:

— Desculpe-me minha senhora – percorreu com o olhar o lugar – isso aqui é uma pegadinha? Tem alguma câmara aqui? A senhora é comediante de um destes programas de televisão para débeis mentais?

Antes que a coisa fervesse, Arthur interveio. Gregório corroborou:

— Andreia, veja bem. A “Bíblia” é valorosa para a senhora, mas não necessariamente para os demais. O Arthur gosta de Balzac, a senhora do “Velho Testamento” e eu particularmente gosto de Darwin, que escreveu “A Origem das Espécies“. Isso não precisa nos dividir. Se eu fosse ao culto, ficaria quieto e deixaria o pastor falar. Aqui quem fala é o Arthur. Simples assim.

Charles Darwin

— Origem das espécies, que absurdo! Então você é ateu?!

— Sou, mas não quero ofendê-la – respondeu Gregório, indicando para que Arthur continuasse.

— E ainda admite! Que absurdo! Bem eu desconfiei da frieza do seu texto Hospital, em que relata a morte da sua mãe. Citou um escritor que tem nome de móvel de casa. Não, não é sofá. Também não é cadeira, é, é, é…

Camus – apontou Gregório – intuindo que Camus, na correlação daquela xiita, estivesse se referindo a cama.

— Isso mesmo. Ateu! Valha-me Deus!

— Podemos retornar? – perguntou Arthur.

— Sim, mas antes, diga-me uma coisa, senhor escritor culto e inteligente – dirigindo-se a Gregório – de onde vem a sua inteligência? O senhor nasceu por acaso? E quando morrer, será o fim?

Para encurtar a dar prosseguimento à fala de Arthur, Gregório resumiu: — Eu vim do macaco. Darwin estava certo! – e apontou para Arthur, dando a deixa para ele continuar.

Mas não foi possível. Andreia se levantou, fulminou Gregório com os olhos e vociferou: — Ímpio. Ateu. Pervertido. Vai morrer e queimar no fogo dos infernos. E dirigindo-se a todos os outros: — Vou me embora pois não admito ouvir que descendemos do macaco, só se for a sua mãe que descendeu do macaco – segurou as mãos do namorado e desceu as escadas.

— Desculpem-me – ponderou Gregório.

— Nada a desculpar, que estrupício essa mulher! – respondeu Lorena.

— Voltando – assentiu Arthur – fica então a pergunta que não quer calar: como conseguir tempo para ler hoje em dia? No mundo dos computadores, tablets, celulares, televisões de tantas e tantas polegadas, etc. Possibilidades de diversão não faltam, então fica a pergunta: como ler calhamaços assim? – sacou da sua bolsa “Dom Quixote de La Mancha“, “A Divina Comédia“, “Naná“, No Caminho de Swann” (um dos tomos do “Em Busca do Tempo Perdido“) e “A Montanha Mágica“.

Seu pai comentou:

— Olha, não sei se sabem, mas Arthur é meu filho. Ele cresceu observando a mãe e a avó dele lendo. Eu mesmo não era muito chegado. Acho que o costume e o hábito vêm de cedo. Hoje observo ele na biblioteca nossa lá em casa e ele fica absorto, envolvido com a leitura. Fiquei intrigado. Comecei a ler “Germinal” por conta dele, por indicação. Acho que é necessário um empurrãozinho.

— Assim é – assentiu o filho – e Gregório, a sua opinião.

Gregório estava desconcentrado, ainda pela discussão com a mulher evangélica que se curara de uma ferida na cabeça por intercessão de um pastor. Pediu desculpas e pediu para repetir a pergunta. Deu a sua opinião:

— Desculpem-me, não quero ferir susceptibilidades e nem parecer ofensivo a quem quer que esteja aqui – treinaria mais, a partir dali, a sua diplomacia – mas a merda, desculpe-me a palavra, mas o empecilho é que a sociedade toda está se idiotizando nas redes sociais, numa masturbação do ego tamanha postando fotos do que come, com os passeios que faz, com a roupa que veste, com quem está saindo, todo mundo hoje é meio herói de si mesmo. Perdemos um tempo medonho com essas futilidades.

— E você que veio lá de Portugal, como é lá? – interessou-se a mãe de Arthur.

— Bem, a cidade também é muito turística. Observei várias selfies, não tenho nada contra, mas observei que as pessoas lá tem um trato melhor com a cultura, com as artes e as letras. Em Lisboa, eles possuem a livraria mais antiga da Europa que data dos anos 1700, por aí, a Bertrand. Bem, não posso atestar o que ouvi, li e vi pois fiquei pouco tempo. Impossível dar um diagnóstico preciso com um olhar de turista. Mas no curso que fiz lá, senti um preparo maior dos professores portugueses, os de Portugal.

— Europa é Europa – assentiu o pai.

— E você não pretende cagar regras para os silvícolas, não é mesmo? – atreveu-se Lorena.

— Não, longe disso.

— Olha a boca, minha filha! – interveio o pai.

— Desculpe-me.

E a conversa fluiu. As três estudantes de Letras interagiram muito, Arthur notadamente conseguira o seu objetivo ao propor aquele café filosófico, apesar dos pesares, da presença indesejada da pessoa que intentara sabotar o encontro. Ao final do café, Gregório autografou mais dois livros para as estudantes amigas de Arthur e conversou um pouco com Lorena, que se desculpou, mais uma vez:

— Desculpe-me o palavreado.

— Não há problemas. Lido com jovens o tempo inteiro e apesar de a direção da escola não saber, falamos palavrões algumas vezes.

— O Arthur ficou sabendo que uma amiga sua e aluna se suicidou…

— Bem, isso de fato aconteceu.

— Que doida, né?

— Não julgo – de repente Gregório pressentiu uma lágrima escorrendo pela face.

— Desculpe-me, por favor! Eu sou um monstro – mostrou-se chateada consigo mesma.

— Não há de quê. É porque a coisa ainda está muito fresca na minha cabeça.

— Tá bom! E diga-me uma coisa: você tem namorada? – ir direto à questão era uma das características daquela jovem.

— Sou professor e escrevo nas horas vagas.

— Não respondeu à minha pergunta.

— Prefiro não responder.

— Segredos?

— Talvez. – Gregório foi salvo pelo cumprimento de Arthur, que os interrompeu alegando que iam embora. Ofereceu uma carona ao amigo, que agradeceu, mas intentava ficar ali pela Savassi mesmo. Lorena se despediu afirmando que iria acompanhar os textos dele no jornal e que comentaria depois. Gregório agradeceu. Saiu da livraria, do shopping e almoçou nos arredores. Sacou sua agenda, a caneta e escreveu o seguinte texto, ainda sob o forte impacto da discussão que tivera:

Meu Macaco = Seu Deus

Gregório Mendes (GM)

Estava num café filosófico e participei de um bate-papo. Aventei alguma teoria antropológica e não sei por que cargas d’água, aludi à natureza humana como proveniente de macaco. Em nenhum momento contrapus nada, nem quis ferir susceptibilidades. Até que durante o evento, uma pastora (muito simpática por sinal) inquiriu-me acerca do meu ponto de vista. As perguntas são todas aquelas pelas quais os ateus passam: “Você afirmou que viemos dos macacos?”; “O que pensa do final da vida, morre-se e pronto?”; “Isso não é muito pouco?”. “Você compara Deus a um macaco?”.

Respondi antropológica e biologicamente. Sim, viemos do macaco. Simples assim. Mas a pastora não se deu por satisfeita e exclamou: “Isso não pode ser!”. Cortei a discussão, até pelo facto de não levar a absolutamente lugar nenhum. Aliás, minha última frase foi emblemática: “Pastora, o meu Macaco é o seu Deus!”. E ponto.

O diálogo foi de alto nível, mas me fez aludir a algo interessante: do mesmo jeito que é cretino um ateu desancar as crenças de quem quer que seja, é notório que alguns religiosos querem desafiar as crenças daqueles que não creem em um divino, um eterno, um transcendente. Aliás, usei propositadamente a palavra creem, pois até um ateu é crente. Ele crê em seu ateísmo.

Como humanista convicto, apregoo que não há diferença alguma entre todos nós, que fazemos parte de uma mesma irmandade. Que respeitemos opiniões divergentes das nossas, pois não seria muita prepotência entendermos que somos mais espertos e inteligentes que os outros? Prometo não participar mais de nenhuma discussão religiosa (eu o fiz por vias indiretas, admito) e se participar, prometo iniciar e encerrar com uma frase apenas: “O seu Deus = O meu Macaco”.

Simples assim.

Quando chegou ao apartamento, digitou, corrigiu alguns pontos e enviou para o editor do O Vigilante!.

Marcelo Pereira Rodrigues

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