Já mencionara o poeta gaiense José Miguel Silva, mas a verdade é que nunca tinha mergulhado na sua obra de forma devida, apesar da introdução teórica que aguçou a minha curiosidade. Lá encontrei uma cópia daquele que é, possivelmente, o seu livro mais lido, “Movimentos no Escuro”. Uma busca difícil com uma recompensa surpreendente e agradável, mas reconheço a falha de não ter visto alguns dos filmes em que José Miguel Silva se baseia.
Quando digo ‘cinema como poesia’, é exatamente isso que encontrámos neste livro. Como afirma Joana Matos Frias, “o livro, constituído na íntegra (ou quase) por poemas que partem da referência explícita, no título, a filmes, respetivos realizadores e datas, é contudo um livro que estabelece um laço muito singular entre essas referências e os textos que elas anunciam. […] as composições de “Movimentos no Escuro” resistem de forma intencional a qualquer tentação – ou tentativa – ecfrástica.” Esse processo é complexo e árduo, pois é obrigatória a visualização dos filmes para uma total apreciação.
As balizas temporais fixam-se entre “O Peregrino“, de Charlie Chaplin (1923), e “Embriagado de Amor“, por Paul Thomas Anderson (2002). Assim, viajamos numa transtextualidade em que o hipotexto consiste na “memória dos filmes”, e não nos filmes por si só. “Não é certo que “Movimentos no Escuro” seja um livro de poemas sobre filmes, comentários de, e ainda menos que manifeste a pretensão da revelação da verdade sobre o cinema. Em todos os seus livros, José Miguel Silva denuncia a impossibilidade de apresentar, pelo poema, qualquer verdade final; pelo contrário, o poema é apenas «literatura»“.

Saliento, o único não-filme presente no livro: Bayern de Munique 1 X F. C. Porto 2 – Artur Jorge (1987). Apesar do grande sobressalto ao encontrar tal exceção à regra, José Miguel Silva desvaloriza o “feito” do clube português e apresenta o jogo de futebol como metáfora para um passado idealizado, pois a cassete é a única coisa que resta.
Em suma, “Movimentos no Escuro” é uma obra de referência, bem como funciona como um exemplo do uso da função écfrase ao unir dois mundos distintos. Como diria Pedro Eiras, “a écfrase é cega, porque é verbal; ou ainda: a écfrase é um modo de cegar o leitor“, pois o livro é “a ruína da visualização impossível“. No fundo, uma leitura obrigatória para quem aprecia cinema e poesia. Recomendo ainda a leitura do blog dedicado ao livro e a cada um dos poemas.
Bibliografia
EIRAS, Pedro. Com os punhos fechados – o Cinema em José Miguel Silva, in [Aula de los medios : poesía, cine y fotografía en el seminario permanenete Arcadia Babélica][Salamanca : Ediciones Universidad de Salamanca, 2012.] – Permalink: http://digital.casalini.it/2524723.
_________. Um certo pudor tardio. Ensaio sobre os «poetas sem qualidades», Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (FLUP) e Edições Afrontamento, 2011.
FRIAS, Joana Matos. “Os Sais e as Cinzas: Dialéctica da Anestesia na Obra de josé Miguel Silva”, revista e-lyra, No. 1 (Poesia e Resistência), Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (FLUP) e Rede Internacional Lyracompoetics, 2013, p. 50, http://www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/11
SILVA, José Miguel. Movimentos no Escuro, Lisboa, Relógio d’Água, 2005.
Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!