O The Sunday Times aponta: “Um fenómeno editorial.” O livro “Shantaram”, de Gregory David Roberts, publicado no Brasil pela editora Intrínseca, é um catatau de 910 páginas. A autobiografia narra a vida de um foragido da justiça, que escapou da prisão na Austrália pela porta da frente, numa fuga ousada e espetacular, e que agora reside em Bombaim, na Índia.
E é ali que nascerá um novo homem, mas antes uma breve explicação sobre os crimes de outrora: não que justifique, e ele próprio não o faz, mas a separação da esposa e da filha é apenas o término de uma vida desregrada entregue às drogas, e como sempre acontece com os “noiados” do entorpecente, o infeliz calha de praticar assaltos à mão armada e o desfecho de todos é previsível: prisão ou morte. No caso do assaltante escritor, ou do escritor assaltante, coube a detenção.
Em Bombaim, inicialmente leva vida de turista, mas quando é espancado e roubado e se vê na difícil situação de não ter mais a quem apelar, recebe a ajuda de um guia que se tornará um amigo do peito chamado Prabaker, intimamente chamado de Prabu, que o convence a ir residir para uma favela, até a sua situação melhorar um pouco. As condições sanitárias e habitacionais como um todo são deploráveis, o autêntico retrato da miséria, mas ali Linbaba, pseudónimo do nosso protagonista, observará que as frágeis condições criam uma espécie de irmandade, e o atestado disso é quando é alertado de que poderia deixar no seu barraco de papelão uma fortuna que ninguém subtrairia uma rúpia.

Códigos das favelas, assim como aqui no Brasil. Por acaso, Lin torna-se o enfermeiro local, angariando simpatias e concentrando-se neste trabalho voluntário. Vemos o renascer de um homem, bastante apaixonado pela misteriosa Karla, mas que entende que ela não se iria querer relacionar com um favelado. O idílio continua e Prabu é o personagem mais iluminado do enredo, com o seu cativante sorriso e as suas inconveniências.
Mas eis que Lin se acaba a relacionar com o chefe do crime organizado e este o arregimenta para as suas fileiras. Khaderbhai é um tipo singular: defenestra o tráfico de drogas e a prostituição, mas atua também na indústria de passaportes (livros) falsos, câmbio negro e exerce o seu poder com mãos de ferro comprando autoridades e fazendo-se respeitar na zona. Mas com Lin envereda pelas discussões filosóficas e de física quântica, sendo os trechos muito interessantes, assim:
“O que estou dizendo é que a realidade, do jeito como você e a maioria das pessoas veem, não passa de uma ilusão. Existe outra realidade, além daquela capturada pelos nossos olhos. A gente precisa de sentir o caminho para essa realidade com o coração. Não existe outra maneira.“
Aos poucos essa forte personalidade nos vai cativando. Faz ver a Lin que, talvez ele não saiba, mas o cosmos quis que se encontrassem de modo a criarem uma relação paternal, e é com moral de pai que faz o filho percorrer o céu e o inferno, através das suas jogadas.
Quando Karla vem visitar Lin à favela, encanta-se com a abnegação deste em combater um surto de cólera (e foi aqui que fiquei a saber que etimologicamente cólera significa diarreia) e parece haver uma esperança para os sonhos românticos, por mais fria e insensível que Karla se mostre. Tudo estava a ir bem, evidenciado na tórrida noite de amor entre eles, mas o inferno vem bater à porta do nosso protagonista novamente: é preso e enviado para uma prisão deplorável, sofrendo toda espécie de abusos e privações.

As cenas narradas são dolorosas de se ler, ficando-nos a impressão do quanto a carne humana pode ser dilacerada e os ossos quebrados. Como é possível a sobrevivência? Lin precisa de passar um recado para fora da prisão, mas tudo isso fica no hiato.
Tempos depois, é resgatado por um amigo a mando de Khaderbhai e uma revelação a posteriori fará Lin odiá-lo. Ele não fora detido por intermédio da sua identidade australiana, mas sim por um complot de uma cafetina que houvera sido ludibriada por ele e Karla na captura de uma prostituta. Mas as aventuras vêm ao corrente e quando vamos ver, Lin está a fazer parte de uma missão do chefão (ele próprio, tal um Alexandre, o Grande, está na primeira fileira) ao Afeganistão, de modo a combater o exército soviético invasor.
Importante ressaltar que o tráfico de armas faz parte da organização do Todo Poderoso. Um desfecho triste e a volta de Lin para Bombaim, para retomar o seu posto na organização, visitar esporadicamente a favela e reunir-se com amigos num bar onde as primeiras cenas do livro são apresentadas. Dentre os tipos presentes, o francês homossexual Didier e o seu cinismo cortante, com o equilíbrio mantido mesmo às custas de doses e doses de uísque.
De todas as lições aprendidas na obra, a que mais se sobressai é a amizade devotada de Prabu a Lin, e vice-versa. Uma fatalidade acometerá o taxista e desprende das páginas da obra aquele sorrisão do guia e amigo. Um livro incontestável, lido na média de 50 páginas diárias, e que sentia a acompanhar-me ao longo das outras horas, da mesma maneira que me marcou como uma cicatriz aprendendo que pode existir filosofia e grandeza num assaltante, que ele não se justifica em nenhum momento e que o remorso aliado à vergonha não será certamente a pior pena a ser cumprida?
Após o término, fico a par dos bastidores: o livro fora escrito na prisão e Gregory David Roberts cumpriu o fim da sua pena. Acerca do título, recomendo a leitura do livro em si, de modo mergulharem nesta extraordinária história. E encantarem-se com outros admiráveis personagens.
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