Gregório, Nico e Brigitte. Viagens que irão definir objetivos aos nossos três amigos. Na mesma semana em que Brigitte embarcara no Air France para Paris, Nicodemos foi desmascarado em sua farsa. Convidado pela escola em que trabalhava a fazer um intercâmbio em Dublin, saiu com evasiva.
— Não posso. Tenho questões familiares a resolver aqui.
— Que pena! – respondeu a diretora do cursinho. – Todos aqui comentam que você seria a pessoa mais bem preparada, uma vez que já rodou o mundo, dizem que até em Camberra você já esteve.
— Sim, mas neste momento realmente não posso – Nico percebeu que, além de nunca ter viajado ao exterior, nem passaporte tinha. Sabia que mesmo que viajasse à Europa, necessitaria de um passaporte com pelo menos seis meses de validade, então estava fora de questão essa missão marcada para dali a dois meses.
— Vou passar então a Andressa. Mas que eu queria que fosse você, queria.
— Agradeço, mas quem sabe numa próxima…
E saiu. Chorou no banheiro. Confrontado com a oportunidade, sentiu-se ridículo a ponto de intentar colocar a cabeça no vaso sanitário e puxar a cordinha. Saiu do banheiro, com olhos marejados. Tentou disfarçar e, para seu desespero, encontrou a diretora, que o reconfortou. Nico fez ver que falar de seu problema familiar o fez emocionar-se. A diretora ofereceu consolo Nico sentindo os afagos carinhosos se rompeu em lágrimas, e a diretora deu-lhe folga de dois dias. Recomposto, fez questão de tirar os dias para investigar quem era realmente e o porquê de ser um contumaz mentiroso. Nesse momento outra entrevista acontecia na escola onde Gregório lecionava.
— Gregório, espero que me entenda – disse a diretora – mas ontem recebi a visita de duas pessoas. Márcia e Christiano, me parecem.
— Sim, sei quem são.
— Então, com todo o respeito, ouvi-os e eles vieram com uma exigência para que nós o demitíssemos, uma vez que, segundo eles, você é homofóbico.
— Sabe diretora? Minha resposta está no livro que te autografei semana passada. Xinguei-os sim, não minto. Mas foi algo específico aos dois. Simples assim.
— Eles quase chamaram a polícia.
— É, senti mesmo a falta da polícia bater no meu apartamento.
— Está sendo irónico, senhor Gregório?
— Não. Estou sendo sincero. Xinguei-os mesmo. Mas não sou homofóbico.
— Sei disso. Lucas, seu aluno, te admira muito. E ele é homossexual assumido. Esses dias tem sido de muita pressão para todos nós.
— É, não quero me fazer de vítima, mas estou, me desculpe a palavra, puto com o que aconteceu com a Carla. Era amigo daquela menina. Gostava muito dela.
— É, o pessoal comenta.
— Comenta o quê? – surpreendeu-se Gregório, sem esconder o nervosismo e apreensão.
— Comenta o básico. Que ela te admirava muito.
— Ah, isso sim. A recíproca era verdadeira.
— Gregório, surgiu anteontem uma oportunidade para o colégio e quero saber se você tem passaporte.
— Sim.
— Quer participar de um curso em Lisboa, representando a escola? – retirou da gaveta um folder com os dizeres de um curso sobre Luís de Camões e Fernando Pessoa, com renomados professores de língua portuguesa do mundo todo e onde ele, Gregório, teria a oportunidade de lançar o seu livro. Com o apoio da escola.

— Eu sou a pessoa mais indicada?
— Pra quê tanta modéstia, professor? É claro que é. Irá representar a nossa escola; já no anuário faremos uma grande promoção e devo te contar outra boa novidade: a rede da nossa escola irá adotar o seu livro como leitura obrigatória. Não sugerida, mas obrigatória. Você é um dos nossos melhores quadros.
— Posso pensar?
— Não. Estamos escolhendo quatro professores da rede. Aqui de Minas, escolhemos você. É pegar ou largar.
— Está bom! Eu vou.
A diretora levantou-se, abraçou-o e fez-lhe um afago, acrescentando:
— Gregório, quando Márcia e o outro rapaz estiveram aqui ontem, e me relataram a sua, me permita dizer, grosseria, entendi que nesses últimos dias você estava sob muita pressão. Quando recebi a notícia desse curso, pensei na hora: “Pronto, será o Gregório!”. Penso que será uma bela oportunidade para você esfriar a cabeça, mesmo sendo daqui a um mês, só os preparativos irão fazer com que tenha um foco. Conhece a Europa?
— Sim, estive uma vez na Itália, outra na França, mas Portugal não. Estudante ainda, fui mochileiro e aventureiro, gostei do que vi – sorriu ao se lembrar das viagens.
— Então, te deixo a dica. Estude Portugal. Por mais que vá a trabalho, marcaremos as passagens com dois dias de folga em Lisboa. Só te peço uma coisa: deixe as provas adiantadas, pois irei colocar substituto nas aulas. Capriche. Deixe tudo bem adiantado. Mais à frente te passo os detalhes.
— Obrigado, senhora! Pela confiança, muito obrigado! – e Gregório sorriu e saiu satisfeito. Não era a viagem em si, a diretora entendera bem a questão do foco e foi com esse objetivo que sacou o celular e ligou para Nico. Estranhou a voz meio chorosa, perguntou se estava acontecendo alguma coisa e se o viajante poderia falar naquele momento. Quando recebeu o sim como resposta, perguntou se ele tinha um guia turístico de Lisboa e estranhou o xingamento alto que recebeu de volta:
— Vá tomar no seu cu!
Gregório desligou. Realmente, o mundo andava muito estranho. Achou por bem ir à Leitura do Pátio Savassi e comprar o seu guia.
Naquele momento, entardecia em Paris e Brigitte se arrumava para sair. Dormira mal no avião, maquiara-se para tirar selfies da janela do seu quarto, que tinha como pano de fundo um dos lados da Torre Eiffel. Tirou fotos e mais fotos, anexou para o e-mail do colunista do jornal e enviou, ficando no saguão do hotel para o tour pelo Moulin Rouge e um passeio de barco pelo Sena. Sentia-se sozinha, alimentando-se do próprio ego e tentando não pensar em sua filha. Deslumbrou-se com as belezas da capital francesa, bebeu champanhe e tirou fotos e mais fotos, postando no Facebook. Como não arranhava nada de francês, se virava com um tradutor que, de português, só sabia o básico. Nessa hora, pensou com raiva em Carla, pois sentia que ali muitos se comunicavam em inglês: “Deus me perdoa, mas se ao menos aquela imprestável da minha filha estivesse aqui, poderia me fazer comunicar. Depois de falar algumas coisas e me deixar situada, poderia, sim, se matar atirando-se no rio Sena, quando eu estivesse já no avião, voltando”. Enfezou-se consigo mesma. Não podia pensar assim de sua filha. Amava-a. E isso era certo. Nos arredores do Moulin Rouge, passou aperto: foi confundida com uma prostituta de luxo e assustou-se com as liberalidades no lugar, isso no cair do dia. Foi salva por um taxista. No bateau-mouche, sorriu a um desconhecido galanteador que lhe estendia uma taça de champanhe. A noite prometia.
Deixemos Brigitte em seus momentos íntimos e analisemos as consequências de tão importante viagem. Realmente, o colunista Érico Martinho publicou, no mais conceituado jornal de Minas, a seguinte nota, um dia após:
“Nossa socialite Brigitte Barsil está de férias na Europa, curtindo a Torre Eiffel (seu luxuoso hotel fica em uma quadra lateral), Marais, visitando o acervo do Louvre e envolvendo-se em atividades socioculturais com personalidades francesas que representam a nata da sociedade parisiense. Brigitte Barsil é conhecida pelo seu voluntariado caritativo e por ser conhecida e admirada como uma das mais belas madames da noite belorizontina. Brigitte está num amoroso affair pela capital da França.“
Apesar da pompa, cabem algumas considerações e explicações deste humilde narrador: Barsil era agora o sobrenome dela, um misto de Barbosa e Silva. Quando o colunista trata de envolvimento em atividades socio-culturais, trata-se de mentira. É que ele mesmo tinha que justificar aquela nota como sendo de relevância. Ele e a citada sabiam que não. Mas nada que garrafas e garrafas de vinho e interesse do colunista em amealhar um patrocínio para a sua coluna não pudesse dar jeito. E amoroso affair resumiu-se na verdade no seguinte: o casinho dela no bateau-mouche embebedou-a, comeu-a no seu quarto luxuoso e, sorrateiramente, levou-lhe um cordão de ouro mais 600 euros. Pensando bem, ainda bem que Carla não estava mais viva.
Depois de dias nublados, Gregório sorria. Lendo e estudando o guia, pretendia fazer jus ao convite e, além de fazer o curso, estudar e trazer aos alunos experiências e vivências do país de Luís de Camões, Fernando Pessoa, Antero de Quental e José Saramago. Pensava em Carla o tempo inteiro. Obsessão. Falta. Sentia falta da aluna. Sentia falta da sua postura. Sentia falta de seus sonhos e dos seus olhos negros. Mesmo com alguns dias para se arrumar, abriu a mala e deixou primeiro lá o “Assim Falava Zaratustra“. De um jeito único, levaria Carla consigo.

Lisboa. Gregório desembarcou pelo voo da TAP desejando sentir a presença de Carla ali. Lembrava-se dos conselhos para que, caso visitasse algum país, saísse do tradicional e descobrisse o novo. Como era sábado, e chegou pela madrugada, encontrou uma chuva fina e optou pelo mais fácil (Carla que o perdoasse): táxi e entrada no hotel Sana. Fez a ficha, dirigiu-se ao quarto do quarto andar e olhou pela janela: chovia na cidade e observou os aviões que levantavam voo. O hotel ficava a quinze minutos do aeroporto. Dormiu. Apagou. Ainda insone com o fuso horário, saiu ao saguão e, intentando caminhar a esmo, informou-se acerca do monumento a Marquês de Pombal. Caminhou procurando um metro. Carla iria admirar essa atitude. Perdeu-se por ruas e avenidas, sentiu o famigerado frio na barriga e percebeu que estava perdido. Chuviscava. Procurou manter a calma e viu afinal o indicativo da placa do metro. Como já estudara as estações, parou na referida Praça e sentiu a chuva apertar. Tirou algumas fotos do monumento e foi com gosto que viu o ónibus de city tour. Para um primeiro dia, valeria. Pensou na justificativa que daria a Carla: entrei no ónibus mais para me esconder da chuva. Fone de ouvido e um fado lamentoso, no primeiro andar passeou e se viu deslumbrado com os monumentos da capital portuguesa. Observou o fascínio dos turistas, ele mesmo bateu algumas fotos e sentiu que habitava as suas origens e história. Fez o tour completo. Retornou ao ponto e continuou no ónibus. Ainda chuviscava. Com a intenção de seguir o fluxo, fez um segundo trajeto e desceu num ponto onde vários turistas desceram. Um sol tímido deu boas vindas. Gregório se viu na Praça do Comércio, passando pelo Arco do Triunfo deles, e tirou fotos da estátua do rei José I. Sentiu o Tejo em toda a sua plenitude e foi almoçar no restaurante Néné, isso depois de despedir um traficante que queria lhe vender haxixe. Comeu um frango com batatas e arroz e buscou informações sobre o Castelo de São Jorge. O garçom advertiu-o de que era longe, Gregório perguntou quanto tempo e, ao ser informado do trajeto de quarenta minutos subindo, sorriu. Ele não estava tão fora de forma assim. Perdido ali, sozinho e observador, voltou a sentir a chuva fina, mas nada que afastasse os muitos turistas que aproveitavam o sábado para descobrirem Lisboa. Chegou num entroncamento com placas indicando av. Almirante Reis e Parque Chão do Loureiro para cima e, ao lado, setas indicavam museu do Aujube, Clube do Fado, Museu Escola de Artes Decorativas e o Castelo de São Jorge. Tomou rumo. Encantado com a cidade, registrava tudo em fotos que buscavam o dia a dia, as gentes, os costumes e, ao entrar numa lojinha para comprar um postal, percebeu o vendedor muçulmano ajoelhado no tapete orando. Esperou a reza e adquiriu o postal do marroquino. Subiu e tirou fotos de um miradouro, o Santa Luzia, com a cidade e o Tejo todo imponente lá embaixo. Adentrou as ruas do castelo, fotografou as placas indicativas Travessa do Funil, Rua do Chão da Feira e Rua de Santa Cruz do Castelo. Viu roupas penduradas nos alpendres e uma portuguesa brava fechou a cara para ele ao ter a sua varanda registrada. Gregório levantou a mão, pedindo desculpas. Pagou o bilhete, entrou no castelo e encantou-se com a vista proporcionada, cada ângulo mais bonito que o outro. Dissecou o lugar. Nem mais se importava com a chuva que apertava e foi ao topo do castelo e, marco conquistador, tocou na bandeira de Portugal. Comprou numa lojinha duas xícaras e uma camisa com dizeres de Fernando Pessoa. Saiu tomando um funicular e, no ponto de descida, meneou a cabeça para uma garota holandesa que sorriu para ele e tomou um táxi. Agora sim, estava moído. Regressou ao hotel, jantando no restaurante do mesmo.
No dia seguinte, certificou-se de que havia visitação no estádio da Luz, do Benfica. Dirigiu-se para lá. Pegou um táxi com um motorista adepto do Sporting e que relatou que o verdadeiro clube de Portugal, o com mais prestígio, era o dele. Nada mais natural, afinal, foi no Sporting que se revelou Cristiano Ronaldo. Esses e outros argumentos. Gregório concordou, desceu no ponto e comprou bilhete para uma visita guiada. Antes, tirou fotos da estátua de Eusébio, o moçambicano que fez história com a camisa do Benfica e de Portugal na Copa do Mundo de 1966. A visita se deu ao lado de um casal espanhol e de uma mãe e filho franceses, e o guia foi bastante solícito. Gregório encantou-se com a vista do gramado, pediu para o guia bater fotos dele na arquibancada e conheceu as águias Luz e Vitória, atrás de um dos gols, apesar de o gramado estar sem as balizas. A seguir, conheceu os vestiários e posou de técnico ao pedir ao guia que tirasse mais um foto sentado na mesa da sala de coletivas. Depois do tour, dirigiu-se ao museu do clube e perdeu-se lá, com a história dos Encarnados. Demorou-se ali. Saiu já por volta de duas da tarde e pegou o metro que o deixou novamente na Praça com o monumento de Pombal. Caminhou a esmo, se viu diante do Palácio de São Bento, com a sua fachada neoclássica, mas, ao invés de tirar fotos do prédio, tirou fotos das casas e prédios em frente. Observou os azulejos, as construções, as ruelas, todo o charme da capital portuguesa e, subindo, chegou ao Chiado. A Praça Luís de Camões com o monumento ao grande poeta português e, mais abaixo, a estátua de António Ribeiro Chiado, poeta do século XVI. A seguir sentou-se para almoçar no A Brasileira, um charmoso café com espelhos dourados que foi considerado ponto de encontro de intelectuais e artistas, dentre os quais Fernando Pessoa. Bateu uma foto sentado junto a Pessoa e dirigiu-se para dentro do café. A muito custo, em pé mesmo, almoçou. O café estava lotado. Saiu e viu por acaso a livraria Bertrand, que ostenta o título de ser a livraria mais antiga da Europa, e soube que Saramago era um dos clientes assíduos. Saiu, tomou um sorvete no Santini e visitou o chique Armazéns do Chiado, com as suas lojas com grifes famosas, dentre as quais a Hugo Boss. Andou mais e tirou fotos e mais fotos das ruas, casas, prédios e dos funiculares que passavam. Nem se importou com a chuva que caía. Bem mais tarde, adentrou uma tasca, tomou uma cerveja que por lá se denomina imperial e mordiscou tira-gosto. Sacou da mochila o “Assim Falava Zaratustra” e, seguindo a orientação escrita de Carla que lesse ao acaso, leu: “São assim as ânsias do poeta: como de pantera, como de águia. Assim são os teus anelos sob os teus artifícios, louco! Poeta! Tu, que és um homem, viste um Deus como um cordeiro… Separar o Deus do homem como o cordeiro do homem, e rir-se ao separá-lo; esta é que é a tua felicidade! A felicidade de uma pantera e de uma águia, a felicidade de um poeta e um louco! Assim como na serena atmosfera, quando já à meia luz, inimiga do dia, desliza invejosa verdejante entre rubores purpurinos, empalidecem à sua passagem as rosas celestes até caírem e sumirem-se na noite: assim caí eu mesmo, noutro tempo, da minha loucura de verdade, dos meus anelos do dia, fatigado do dia, enfermo de luz; assim cai para o caos, para as sombras… abrasado pela sede de uma verdade. Recorda-te, coração ardente, como então estavas sedento? Esteja eu desterrado de toda a verdade! Mais do que um louco, não! Tanto como um poeta!”. Estava imerso nisso quando ouviu o dono da tasca ralhando com a cozinheira, pois ela havia errado o prato pedido por Gregório. Este interveio, ao ver um ovo estrelado e um pedaço de linguiça gordurosa e salada, assentiu e disse estar bem. Na verdade, não estava. Mas se condoeu da empregada que quase foi às lágrimas. Gregório mais uma vez contemporizou, afinal, era quase o mesmo que uma sopa de mariscos, o real pedido. Na hora de pagar, o dono quis dar desconto, Gregório esclareceu não ser necessário. Saiu. Cansado, tomou um táxi e no saguão do hotel, teve tempo ainda de conhecer uma checa, Mirna. Tomaram um drinque e conversaram sobre Portugal. Mirna era casada com um diplomata que estava em missão ao Porto. Despediram-se e Gregório preparou-se para o curso no dia seguinte. Objetivo da viagem. Nos três dias de curso, fez o básico: hotel, van para o anfiteatro, almoço, hora do cafezinho, intercâmbio (com angolanos, cabo-verdianos, portugueses e outros brasileiros) e volta ao hotel. Vendeu alguns livros e fez bons contatos lá. Retornou a Belo Horizonte numa quinta, num voo das quatro da manhã.