Assistir ao filme português “A Herdade”, do realizador Tiago Guedes, com argumento escrito por Tiago, Rui Cardoso Martins e Gilles Taurand, com duração de 2h46min., é penetrar num drama muito bem desenvolvido que conta com os atores Albano Jerónimo, Sandra Faleiro, Miguel Borges, Ana Vilela da Costa, João Pedro Mamede, Victória Guerra, João Vicente e outros.
O filme apresenta três cortes temporais, um brevíssimo (1946), e outros que dividem a trama (1973 e 1991). O personagem principal é João Fernandes, que em miúdo já foi moldado pelas agruras do existir, ao presenciar a cena macabra de um irmão mais velho morto, enforcado dependurado numa árvore. O seu pai manda-o chamar para lhe mostrar a personalidade derrotada de um fraco.
Assim, quando entramos no ano de 1973, Portugal está às voltas com manifestações políticas e com a caça aos comunistas, num país que anseia por sair do regime de Salazar. João não se quer meter em política, domina com mãos de ferro a sua herdade e tem lá uma moral bastante relativa. Mas foi isso que me surpreendeu no seu caráter: lembrou-me em muitas passagens o ideal do Além do Homem de Nietzsche. Mais para o final da película, quando o seu filho desajustado (Miguel), consumidor de drogas, conversa com a sua passiva mãe e debocha do aspeto inseminador do pai, chega a levar um tabefe, mas a verdade é essa mesma.

Como homem que pega em tudo aquilo que tem vontade, João toma Rosa (esposa de Joaquim) pelas mãos e deita-se com ela. Como atitudes que indicam uma certa ética “torta”, não tem paciência com os filhos, tolera a esposa e os seus genros e desiste de ensinar equitação, com um jeito mais duro de se portar ao miúdo Miguel. Joaquim é o capataz faz-tudo e empregado de confiança. Vez ou outra perde o controlo e bebe além da conta.
João é admoestado pelas autoridades de Lisboa que insistem para que ele declare apoio ao regime. Este não se dá por vencido e nega, chegando a procurar na Repartição da Polícia um serviçal que havia sido preso por insuflar os companheiros com ideais comunistas. João apela ao sogro, que é um destacado general do regime, e consegue retornar com o seu homem. Mais à frente, numa festa de grã-finos onde a irmã de Leonor estava a celebrar o seu casamento, João tem que suportar todo aquele ambiente nauseabundo, e chega a reclamar de falta de ar.
Historicamente, sabemos que a Revolução dos Cravos em 1974 modificou o regime, dando ares democráticos ao país de Camões. João parece que nem comemorou e nem se ressentiu. Metido nas suas coisas, é daqueles para os quais “minha casa é meu reino” (trecho de uma música de uma banda de rock do Brasil, Biquíni Cavadão).
Ocorre o salto para 1991, João Fernandes já está endividado e vê aos poucos a ruína da sua família e propriedade. Pequena ruína, pois o certo é que o sujeito era bastante abastado. Miguel não deu nada que prestasse, e o refúgio nas drogas indica-nos um ser humano frágil, mimado pela mãe. Nem preciso de descrever as personalidades opostas entre filho e pai.

Uma aproximação perigosa ocorre entre a filha do patrão (Teresa), interpretada pela bela Beatriz Brás, e António, filho de Joaquim e Rosa, mas na verdade filho de João. Aqui o drama atinge o ponto mais alto e ficamos extasiados com tantos segredos que são atenuados com boas doses de vinho que inebriam as mentes nos jantares familiares.
O sensacional da película é a não tentativa de edulcorar o caráter de João Fernandes. Este é trabalhador, concentrado nas tarefas que faz, bebe o seu uísque e fuma o seu cigarro, “conversa” com a sua égua (ou cavalo, não me atentei para o sexo) e aguenta os desaforos de quem se atreve a desafiá-lo, num diagnóstico mais que preciso da sua esposa Leonor, que afirma que ele se excita por aquilo que não consegue ter. Como drama pouco é disparate, pois ele engraçara-se há uns tempos atrás pela irmã mais nova da esposa.
É um filme para macho! Personalidades mais ‘afrescalhadas’ poderão insurgir-se contra tantas insubordinações e segredos, nessa constante edulcoração da vida que nos faz acreditar, erroneamente, que vivemos no melhor dos mundos e que todas as pessoas são boas e bonitas. A fotografia e os cenários da “Herdade” são grandiosos e permitem-nos viajar pela região ao Sul do Tejo, quase três horas muito bem aproveitadas. O filme remete um pouco para “O Leopardo“, embora sem o grau cavalheiresco deste clássico de Luchino Visconti.
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