OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

“The Killing of Two Lovers” (2020) conta a história de David (Clayne Crawford), numa tentativa intensa e profunda de gerar uma reaproximação na relação com a sua esposa, Nikki (Sepideh Moafi). Numa fase algo frágil da essência do casamento, acordaram, neste período de “reflexão”, em ver outras pessoas, caso isso se proporcionasse. No meio deste alvoroço emocional estão os seus quatro filhos, três rapazes e uma rapariga, esta já pré-adolescente. Ambos não aceitam muito bem este período estranho entre os pais, uma realidade que tanto aflige crianças no meio de separações.

A grande questão que se levanta neste sentido prende-se com o seguinte: David, no meio de tantos pensamentos impróprios, num estado de espírito profundamente amargurado e cujo temperamento se revela altamente volátil, conseguirá aceitar e ultrapassar a nova fase da sua vida? No interlúdio deste “tempo” dado à relação, David vai viver com o seu pai e Nikki começa a envolver-se com outro homem, Derek (Chris Coy). Quando David descobre, a sua azáfama interior é espoletada e o seu norte de valores vai sofrendo certos desvios.

“The Killing of Two Lovers” é uma história altamente fascinante e inesquecível, que nos transporta para um meio rural, e onde Robert Machoian, argumentista e realizador deste filme, cautelosamente vai guiando o espectador através de uma câmara em formato 4:3, metáfora deveras prolífica e acertada de uma certa prisão poética em que David está inserido ao longo da narrativa.

“The Killing of Two Lovers”

Desta forma, toda a história vai-se desenrolando num registo mais intimista e a escolha de viajarmos pela profundidade e perspetiva de David permite-nos, não só entendermos o seu lado, como também perceber que o filme, apesar disso, não toma nenhuma posição crítica, apenas nos mostra a sua realidade subjetiva e objetiva — o mais fielmente possível. Além disso, os sons fortes e intensos que compõem a mistura de som tornam o clima de tensão deste filme ainda mais ofegante e progressivo, gerando, sucessivamente, pequenos gatilhos na fragilidade mental de David.

Desta forma, o filme, tecnicamente, torna-se num trabalho de filmagem magnífico, que a par com o seu argumento verdadeiramente sublime, consegue imortalizar com bastante personalidade aquilo que é espoletado na mente humana em pleno cenário de decadência de uma relação amorosa. Com um cuidado digno de registo em não deixar o clima de tensão mais apreciável desvanecer, e sem nunca deixar de ser tematicamente interessante e estimulante, estamos, indubitavelmente, perante um retrato sombrio, instável e cru do que é estar numa relação, tentar abraçar os seus problemas e seguir em busca daquilo que faz mais sentido (humanamente falando), dentro da volatilidade inexorável dos sentimentos, que faz parte da condição humana.

O facto de “The Killing of Two Lovers” ter sido executado sob um orçamento reduzido é também ela uma circunstância poética e metafórica para com a incidência temática de todo o seu conjunto: uma obra que sabe perfeitamente o que quer, do início ao fim, conseguindo dar “aquele salto” dramático nos momentos-chave.

David (Clayne Crawford), Nikki (Sepideh Moafi) e Derek (Chris Coy)

Outro ponto deveras relevante vai, precisamente, na questão já explorada da nossa personagem principal, nomeadamente no sentido em que, em pleno character development, nos são apresentadas várias facetas do mesmo, desde pensamentos loucos de pura violência a momentos mais meigos com os filhos, imortalizando, concretamente, a ideia da multiplicidade humana em matéria de personalidade fragmentada.

Posto isto, sendo emocionalmente bastante denso e assertivo, e por todas as questões mais universais em que toca, “The Killing of Two Lovers” consegue ter nos seus mais subtis pormenores a sua maior diferenciação: desde o facto de o filme se passar em Utah, um estado pouco populoso, procurando dar a ideia de múltiplas sensações de vazio, em paralelo com o nosso protagonista.

Desta forma, é uma obra que em matéria de ambiente está bastante alicerçada numa dinâmica sui generis de esperança: David, no fundo, durante toda a história, só quer que as coisas melhorem e só permite dar o tempo que a sua esposa pediu precisamente porque acredita e tem fé que é a única coisa que ainda os pode manter juntos – numa luta incessante pelo que, no seu universo, vai continuando a valer a pena.

Tiago Ferreira

Rating: 4 out of 4.

Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!

IMDB

Rotten Tomatoes

One thought on ““The Killing of Two Lovers”: Um amor que não morre(rá)

Leave a Reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: