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Porque A Arte Somos Nós

Apresento ao público português o polémico jornalista Paulo Francis (1930-1997). Para uma primeira visualização, vão ao YouTube e assistam a algumas das suas performances como jornalista. Gosto também da sua veia de romancista e aqui irei tratar deste departamento. Durante a trilogia dos romances “cabeças”: “Cabeça de Papel“, “Cabeça de Negro” e “Cabeça” (inédito), o escritor brinda-nos com o seu livro de memórias “O Afeto que se Encerra” (Civilização Brasileira, 1980, 177 páginas).

“O Afeto…” não se trata de uma autobiografia tradicional, contando desde cedo com o sarcasmo e inteligência refinada de um dos melhores jornalistas que o Brasil já teve. O livro permite ao autor a verve jornalística, certamente um refúgio para as técnicas precisas que utilizou para a conclusão dos dois primeiros romances, execrados pela Academia tradicional.

“O Afeto…” destila humor e leviandade: “Fechei-me em mim mesmo, perplexo, rancoroso, engatilhando sarcasmos” (p. 13). Por mais que fale de si mesmo, Paulo Francis inseriu erudição desde as primeiras passagens: Dostoievski, Tolstoi, Freud, Sartre e Joyce povoam o corolário de citações. E confessa as punhetas na fase adolescente, até de modo a afastar o rótulo de escroque pedante.

O capítulo II traz o título “Prolegómenos: ou seja, Alô”. Nascido no bairro de Botafogo, no tempo áureo do Rio de Janeiro, Paulo faz um retrato rápido da aristocrática família: o pai Adolfo, a mãe Irene e o irmão dois anos mais velho, Fred. Esse último é “assassinado” pela Cruzeiro do Sul, companhia aérea depois absorvida pela Varig, hoje falida. O desastre aéreo deixa marcas profundas em Francis, que dedica uma nota de rodapé extensa explicando o termo “assassinado”. Há uma confessa fúria franciana que queria destruir a todo custo a reputação da Cruzeiro, numa ensandecida batalha jornalística no jornal Última Hora.

O jornalista brasileiro Paulo Francis

A morte do irmão apresenta-se como um lançamento dos dados, em que somos subjugados e abandonados à mercê do destino pelos Deuses. O estilo “metralhadora giratória” já aparece aqui. Misturam-se personagens célebres, máximas filosóficas, perpassadas pelo memorialismo do garoto que foi interno no Colégio católico São Bento, em Paquetá, no bairro do Rio de Janeiro. O tempo é estendido, flexionado, trazendo o seu autor nas suas idiossincrasias, ajuizando valores aos comentários mais ínfimos.

Uma das melhores passagens do livro diz respeito à tournée empreendida por Francis pelo Brasil afora, quando era membro do Teatro do Estudante (TE). Notadamente, as suas viagens ao Nordeste, quando contrapõe o modo civilizatório ao nativismo verificado em algumas passagens. O mesmo olhar torto, maledicente, corrosivo. Quanto a possível fama de homossexual adquirida no Teatro, Francis só não se importa quando mantêm intacto a proximidade unha e carne com o amigo Marcello. A sua passagem por Alagoas, Recife (onde foi detido por se exibir nu no hotel graças ao calor, segundo ele) e Manaus, terra de “silvícolas” (termo meu), fruto de uma cansativa viagem aérea, fruto do mecenato do presidente da República Getúlio Vargas.

Francis descreve-o como personagem de si próprio, com pompa e aura mistificada. O esforço do jornalista não lhe renderia bons resultados, daí o seu interesse pela direção até culminar no seu ofício de crítico teatral, importante marco demarcatório do homem que ousa inovar à espera de melhores apresentações e efetiva consolidação do nosso teatro. Claro que nesse ofício ele cometeria os seus deslizes a ponto de levar um soco do ator Paulo Autran, que tomou as dores da atriz Tônia Carrero, isso bem mais tarde. Ao comentar as produções de Aurimar Rocha, Eva Todor e Alda Garrido, Francis ironiza dizendo que só conseguia prestar-se a esse papel com talagadas e talagadas de uísque.

No capítulo “Deus é brasileiro”, Paulo Francis relembra o perigoso ano de 1964, e mais do que isso, todo o período de cassações e perseguições. De Nova Iorque, trabalhando na TV Globo como correspondente, ele teria ao longo do tempo o mesmo olhar ferino, ferindo as instituições com coragem e arrojo. O lema do petróleo, a seu ver, viria a descaracterizar o lema “Ordem e Progresso” para Pro-Esso.

O fanatismo seria descaracterizado pela nossa imbecil cultura cristã enraizada. Existe uma passagem que se aplicaria muito bem à situação política do Brasil nestes últimos 20 anos: “Sabemos como as pessoas se postam no poder“. Um dos mais notáveis jornalistas da Folha de S. Paulo, o principal jornal do Brasil, mas nunca deixaria de ser o “afilhado” de Roberto Marinho, o todo poderoso da TV Globo.

Escrito quando Francis tinha cinquenta anos, o livro de memórias é um atestado da conturbada psicologia do seu autor. Qualquer resenha ou resumo pode perder perspetiva se tomarmos como exemplo a falta de memorialismo lógico, restando apenas a inconclusão de uma aforismática teia de ideias e atitudes. Ver a perspetiva confessional de Francis é colocar-se em suspenso, ridicularizar certos ícones de pés de barro e atravessar um caminho rumo ao incerto.

O Francis que aparecia esporadicamente no Jornal da Globo, aquele velhinho arrogante com óculos meio fundo de garrafa, e que disseminava intrigas e mais intrigas, às vezes parecia atuar alcoolizado. Talvez a vigilância lhe fosse um pouco frouxa ao irromper pelo escritório da Globo em Nova Iorque. Para os seus fãs, algo formidável!

Do menino que achava graça àquele velhinho feio, resta a admiração e a certeza de uma ausência. Dessas ausências jornalísticas que não incomodam mais. Que pena!

Marcelo Pereira Rodrigues

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