Podem encontrar o oitavo capítulo aqui!
Capítulo IX
Cíntia estava envolta pela escuridão. Olhando ao redor, viu que não havia um espaço sequer que a negritude não alcançasse. Forçou a vista mais um pouco, piscando insistentemente. Precisava acostumar seus olhos com a falta de luz. Aos poucos, seu entorno foi se moldando, como se estivesse sendo desenhado naquele exato momento. Percebeu que estava em uma pequena vila simples, com casas feitas de pedras, e suas portas e janelas feitas de madeira. Devorou cada detalhe, à procura de alguma pista. Contudo, não conseguia identificar onde estava. Aparentemente, nunca estivera ali. Por mais que, lá no fundo, sentisse que aquele lugar lhe era familiar.
Um raio rompeu a escuridão, suas raízes se espalhando por todo o céu. A guerreira tomou um susto com seu barulho estrondoso. As luzes direcionaram seus olhos para cima, à procura de pequenos guias que pudessem informar sua localização. Mas nem a lua nem as estrelas estavam à vista. Via-se, apenas, uma enorme nuvem escura, em formato de uma grande espiral. Era um presságio de uma tempestade violenta. Um pequeno tufão estava se formando. E, se recordando de seu treinamento, a general começou a correr para um dos cantos. Ela precisava de um abrigo. Imediatamente.
— Tem alguém aí dentro? — bateu na construção mais próxima, na esperança de que alguém a acolhesse. Contudo, mesmo batendo três ou quatro vezes, ninguém respondia. Apressou-se para chegar à casa ao lado, desejando um pouco mais de sorte. Todavia, a única coisa que escutava era a sinfonia de uma ventania impiedosa, a cada segundo ainda mais forte. Estranhando, a guerreira resolveu, então, olhar pela janela, para ver se conseguia ver alguém ali dentro. Mas, assim como a fachada, os móveis simples estavam intocados, se degenerando com o tempo. Foi então que ela percebeu. Por isso estava tudo tão quieto. Ela estava em uma cidade abandonada.
A chuva começou a desabar com fúria contra o chão. O que havia começado em poucas gotas logo se tornou um turvo branco a engolir tudo que estava ao seu redor. A ventania brincava com a água, fazendo-a rodopiar pelo ar enquanto raios estremeciam o céu. Logo a tempestade iria aumentar, Cíntia sabia disso. Por isso, molhada e com frio, se jogou com toda sua força contra a porta, que cedeu com um rangido lento e abafado, caindo no chão e levantando uma nuvem de poeira ao seu redor.
Tinha que ser rápida. Analisando ligeiramente a porta, percebeu que esta não iria mais parar em pé. Como solução, empurrou uma mesa mofada e a usou como um apoio, pressionando a porta contra o batente. Com a entrada fechada e a tempestade lá fora – com exceção de algumas goteiras –, sua preocupação era outra: precisava de uma forma de se esquentar. Com os músculos trêmulos e os dedos duros, quebrou as quatro cadeiras, colocou-as na lareira, fez faíscas raspando suas facas uma contra a outra e usou o enchimento de feno como combustível inicial. Depois de um tempo, o fogo cresceu, irradiando tudo ao seu redor.
A general ficou um tempo parada tentando aquecer suas mãos e secar suas roupas. Contudo, mesmo estando bem próxima do fogo, ainda sentia uma sensação gélida entrar pelas frestas de suas roupas e tomar todo o seu corpo. Ao averiguar o que estava acontecendo, notou uma pequena ventania sair de uma minúscula janela do outro lado. Pelo visto, a batente já havia, há muito, pendido e não possuía barreiras para impedir o vento de alcançá-la. Por sorte, havia um quadro antigo na parede do mesmo tamanho da abertura. E, arregaçando as mangas, levantou-se e foi em direção à janela, pronta para resolver sua adversidade.
Entretanto, quando foi encaixar o quadro na fenda, viu uma coisa muito estranha do lado de fora. Uma mulher enfrentava, sozinha, a tempestade, indo contra todas as recomendações que a guerreira já estudara. Passou correndo pela casa, aparentemente carregando algo frágil em seus braços. Sem pensar duas vezes, Cíntia derrubou a mesa e a porta, correndo freneticamente atrás dela, tentando chamar sua atenção. Precisava acolhê-la e alertá-la sobre os perigos. Mas a mulher, por mais alto que Cíntia gritasse, não notou sua presença. Só havia, então, um jeito de pará-la: alcançando-a.
Porém, essa não seria uma tarefa fácil. A mulher era muito rápida. Não diminuía a distância entre as duas. Isso sem contar com a influência externa. Rajadas fortes de vento batiam contra o seu corpo, fazendo-a oscilar de um lado para o outro. A torrente forte diminuía sua visibilidade, precisando forçar a vista para ir na direção certa. As únicas luzes eram dos clarões que hora ou outra acendiam o céu. E, cada vez mais, o frio dominava seus músculos, fazendo-os pesarem como chumbo. E, por mais que sua consciência pedisse para que procurasse um abrigo e saísse da tempestade, ela continuou. Cada minuto parecia uma eternidade.
Depois de um tempo correndo, a mulher finalmente parou. Cíntia respirou aliviada, e, quando virou o rosto para observar ao redor, assustou-se com o quanto haviam andado. Não estavam mais na vila com casinhas simples, mas sim em uma parte nobre da cidade, cheia de casarões e mansões enormes e bem arquitetados. Contudo, estes também possuíam a mesma aparência de abandono: paredes e telhados caindo, pintura denegrida, espaço invadido por plantas e ervas daninhas… E, por causa da tempestade forte, a guerreira teve a impressão que podiam desmoronar a qualquer instante. De qualquer jeito, isso não era problema seu. Olhou para frente, onde pairava a silhueta da mulher. Estava tão cansada que a general conseguia ouvir sua respiração ofegante por cima da tempestade. Isso a fez questionar por quanto tempo aquela moça estava fugindo. E do que ela estava fugindo.
Resolveu se aproximar. Precisava de respostas. Afinal, que lugar era aquele? Como a guerreira poderia ajudá-la se nem ao menos sabia quem era ela? Isso sem falar que, a cada instante, o tufão ficava mais forte. Já começara a perder as forças para o frio, e a luta com a ventania para conseguir ficar em pé era severa. Tinham que procurar um abrigo agora! Por essa razão, avançou passo após passo, com muita cautela, como se estivesse diante de um animal selvagem. Devida à pouca visibilidade, ela conseguiu chegar sem que moça a percebesse. E, quando já estavam lado a lado, não conseguiu conter o espanto ao olhar, pela primeira vez, em seu rosto.
Era um rosto extremamente familiar. Mas, ao mesmo tempo, não conseguia identificar de quem era. Prendeu a respiração. Não tinha mais domínio sobre seus músculos. Estavam totalmente paralisados. Enquanto isso, via a moça tentar proteger algo em seus braços. Uma coisa muito bem embalada em diversos panos. Usava o corpo como um escudo, deixando que a tempestade caísse com força em suas costas enquanto abrigava o objeto em seu peito. Entretanto, o que elas não sabiam era que havia outro ser observando-as de longe.
O grunhido. As duas deram um pulo, virando-se na mesma hora para se encontrar com ela. A sombra mais negra de todas.
Rapidamente, Cíntia começou a correr. Estava com o coração acelerado, sua espinha ardendo, seus pelos arrepiados. Não conseguia controlar o seu medo. Agora entendia o motivo de aquela mulher estar fugindo tanto, em meio a uma tempestade violenta. E, assim como ela, a guerreira iria fugir. Suas pernas ágeis logo tomaram distância, indo cada vez mais longe. Contudo, percebeu que não ouvia barulhos de pegadas além das delas. Girou a cabeça e viu que a moça havia ficado para trás. Suas pernas pararam instintivamente. Onde mais ela estaria? E, quando virou para a outra direção, viu a mulher, parada no mesmo lugar, a poucos metros da sombra.
A general voltou. Ela precisava ajudá-la, não podia deixá-la lá com esse ser. A coragem logo tomou o lugar do medo, seus músculos respondendo por si mesmos. Contudo, ao mesmo tempo que se aproximava, a sombra também ia em direção à mulher, calma e lentamente. Acelerou ainda mais o passo. Tinha que evitar esse encontro. Com uma velocidade incrível, atravessou o local em tempo recorde. E, quando, finalmente, encostou no ombro da moça, a sombra também estava lá, com sua face negra a poucos centímetros das duas.
Seu coração congelou. Seus olhos, fixos na sombra, tentavam anteceder qualquer movimento que ela fizesse. Todavia, ela não fazia nada, só a encarava, despertando um medo escondido no fundo da alma de Cíntia. Chegava a ser até mesmo hipnótico. E, assim como a moça ao lado, a guerreira ficou paralisada, refém das vontades daquele ser obscuro.
No entanto, não era Cíntia que a sombra queria. Aos poucos, ela começou a levantar uma de suas mãos, avançando em direção à mulher. O coração da general começou a palpitar. Não entendia como, porém, sabia o que aconteceria se aquele ser a tocasse. Achando forças de onde não tinha, quebrou o feitiço e começou a puxar fortemente a moça na direção oposta. Mas ela não mexia. Parecia uma pedra, esculpida na mais pura face de pavor. Mesmo assim, Cíntia não iria desistir fácil. Ela ia parar a sombra. Porém, sua força de vontade não foi o suficiente. E, quando a mão do ser finalmente a alcançou…
A sombra desapareceu, levando a moça consigo e deixando apenas suas roupas.
Cíntia desabou. Caiu de joelhos e se pôs a chorar. Não conseguiu salvá-la. Sentia-se patética. Deveria ter sido mais forte, não podia ter deixado que isso acontecesse. Mas aconteceu. E o que faria agora? Por que essas coisas aconteciam apenas com ela? Não conseguia suportar. Estava fraca. Não conseguia nem ficar em pé. Como as pessoas poderiam confiar nela, se nem ela mesma confiava? Várias vozes começaram a povoar sua mente, dando o mesmo julgamento. Ela era culpada, e nada mais…
Um outro barulho a despertou. Não da sua mente. Um barulho diferente. Era um choro de um bebé. Um bebé precisava de sua ajuda. A guerreira levantou-se e começou a procurar de onde vinha aquele choro, ficando surpresa ao perceber que irrompia das roupas que aquela mulher deixara para trás. Então era isso que ela estava protegendo! Pegou o pacotinho, e colocou próximo de seu seio. Assim que ele sentiu estar no colo de alguém, soltou um resmungo e parou de chorar. E, por mais triste que estivesse com a morte da mãe, a general soltou um sorriso, sentindo o dever de cuidar daquela criança.
A chuva estava parando, o céu se abria em um lindo amanhecer. Agora, com um pouco de claridade, resolveu ver o rosto da criança especial, protegida com a vida de sua mãe. À medida que desenrolava o pano que envolvia a cabeça da criança, conseguia ver um pouco de seu rosto. Primeiro apareceram os olhos, depois o nariz, a boca, e, por fim… Essa não! Não pode ser! Os cabelos eram ruivos, como o nascer do sol. Agora tudo se encaixava. É claro que ela conhecia a mãe daquela criança. Sua mente começou a desabar, ficou sem nenhuma reação. Tudo que conseguia discernir era a sua culpa, que tomava seu peito enquanto seus olhos transbordavam de lágrimas. Não iria aguentar aquele peso. Acabou largando a criança, desesperada. E, quando o bebé encostou no chão…
Cíntia acordou com um pulo. Sem ar, levantou-se da cama e começou a andar em círculos, dentro do seu quarto. Tentava se acalmar, lembrando que era só um terrível pesadelo. Não podia ter medo de apenas um pesadelo, precisavam dela forte. No entanto, não conseguia esquecer essas imagens. “Será que estou ficando louca? O que está acontecendo comigo”? E ficou assim, questionando a noite inteira, sem conseguir dormir. Afinal, não era do sonho que tinha medo. Mas do fundo de verdade que ele carregava.
Chegamos assim ao fim desta maravilhosa aventura. OBarrete agradece à escritora Bárbara Kristina por nos ter dado a honra em partilhar a sua obra. Os nossos mais sinceros votos de sucesso e nunca se esqueçam que “A Arte Somos Nós”

Bárbara Kristina Generoso Cotta Lopes é natural de Governador Valadares, mas cresceu em Itabirito, local que ama e considera como sua cidade. Cercada por livros desde pequena, já havia se manifestado artisticamente no teatro e no balé, contudo, com a chegada de desafios, novos caminhos foram descobertos, o que fez com que entrasse de vez no mundo da literatura. Aos quinze anos começou a escrever, e aos dezoito publicou seu primeiro livro, “Os Sentimentos das Sombras”, o que a deixou apaixonada por essa área. Agora com vinte anos, possui dois livros publicados, além de grandes expectativas para o futuro.
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