“Eu pensava um bocado sobre os poemas que não conseguia escrever… Eu masturbava-me… A solidão é essencialmente uma questão de orgulho, mergulhamos no nosso próprio cheiro. É sempre assim com todos os verdadeiros poetas. Se alguém passa muito tempo a sentir-se feliz, torna-se banal. Da mesma forma, se ficamos infelizes por muito tempo, perdemos a nossa capacidade poética… A felicidade e a poesia só podem coexistir por um prazo brevíssimo. Depois disso, ou a felicidade embota o poeta ou o poema é tão verdadeiro que destrói a sua felicidade. Morro de medo da infelicidade que me espera em Frankfurt…
“Neve”
“Neve”, livro do escritor turco Orhan Pamuk (Editora Companhia das Letras, 2007, 488 páginas) é uma obra agradável. O que faz um livro transformar-se num bestseller? Ainda para mais ao tratar um país tão contraditório quanto a Turquia? Nós, ocidentais, temos sérias dificuldades quando, de forma maniqueísta, outorgamos o mal como sendo domínio do outro. Orhan Pamuk, Prémio Nobel da Literatura em 2006, trata dessas diferenças de forma brilhante. Cadencia as páginas da obra com leveza de poeta.
Cada palavra é meticulosamente colocada, cada ponto de vista vem sem conceitos fixos. O amor é retratado de modo subtil, sendo Ka (iniciais de Kerim Alakusglu, com cedilha na letra “s”) o protagonista da trama. Fica ilhado na bucólica Kars, cidadezinha da província onde o mau tempo (pois neva) fecha as estradas. É neste intervalo de três dias que Ka sofrerá as impressões agudas deste microcosmo.
Perguntado pela reportagem do jornal francês Le Monde: “De onde vem esse interesse, manifestado em “Neve”, pela Turquia desassistida, por essa cidade de Kars assombrada por uma profunda ambivalência entre o islamismo, justamente, e o kemalismo (ideologia baseada nos princípios de Kemal Ataturk, nascido em 1881 e falecido em 1938)?“, o autor respondeu:
“De repente, senti um desejo grande de narrar a Turquia contemporânea, o islão político, o fundamentalismo, o secularismo, o tropismo nacional pelos golpes de Estado militares, o nacionalismo dos nossos grupos étnicos, as forças políticas e as suas fações insondáveis. E desejei que a história fosse ambientada numa cidadezinha de pobreza muito grande e que essa cidadezinha se transformasse num microcosmo da Turquia, tal como a vejo hoje. Quis tecer uma intriga que revelasse os mistérios e as aparências falsas do meu país, os modos de pensar sibilinos, o extraordinário labirinto político.“
“… Perguntei-lhe se hoje em dia a cidade estava ainda mais pobre e mais deserta que há quatro anos atrás. Fazil disse que nos últimos anos todo mundo passava mais tempo a ver televisão e que, em vez de passarem os dias nas casas de chá, os desempregados agora preferiam ficar em casa assistindo a filmes do mundo inteiro, que chegavam aos seus televisores via satélite. Todos na cidade tinham economizado para comprar aqueles pratos brancos mais ou menos do tamanho de tampas de panelas de pressão que agora se viam em todas as janelas. Segundo ele, aquela era a única novidade na cidade…“

Abrangente a resposta? Pretensiosa talvez? Sim, para a primeira pergunta, não, para a segunda. Pamuk retrata através de uma singularidade toda a ideologia de um país. Só para se ter uma ideia, a Turquia está incrustada naquilo que denominamos Eurásia. Possui duas capitais: o centro comercial do Ocidente (Ankara) e a histórica Istambul. A religião oficial e o Estado possuem fronteiras ténues. O fundamentalismo dos islamitas está em contraste com a liberalização de um Estado gigante que deseja entrar na Comunidade Europeia (os ocidentais liberais). Os entraves são muitos.
Há que se vencer o simplismo neoliberal que alcunha o Islão político como retrógrado. Em alguns casos, certamente. Mas as razões fundamentalistas (os conservadores) devem ser ouvidas também. Em contrapartida, a intolerância ao livre pensamento fez com que Orhan fosse processado de forma kafkiana, ganhando, porém, nos tribunais pelo mundo fora o direito a exercer o seu brilhante ofício, o de romancista. Atentemo-nos para o facto de que os jornalistas não levam uma vida fácil na Turquia, e não são raros os casos de detenção por contrariarem o regime.
Admirador confesso do francês Marcel Proust (1871-1922) e do russo Dostoievski (1821-1881), Orhan Pamuk tornou-se uma referência política e literária que o fez ser considerado pela revista Time uma das cem personalidades mais influentes do mundo. Esses rótulos incomodam-no, pois poderá transformar-se num porta-voz. Ele parece compactuar com a mesma ideia de Jean-Paul Sartre (1905-1980), que disse certa vez: “O escritor não pode se transformar numa instituição“.
O romance “Neve”, livre de todo o paradigma conceitual e autobiográfico, é uma obra portentosa, bem elaborada, como uma teia de aranha, poeticamente hermética com as metáforas acerca da neve e das suas inspirações. O autor, o porta-voz (?) de denúncias contundentes, que proclamaram o assassinato de um milhão de arménios e de trinta mil curdos, rememora estes factos de forma amargurada. Criatura e criador, a neve deu a Orhan inspiração para a “Neve” poeticamente trabalhada? Um facto ou terá sido mera coincidência?
“… Ele pensou na sua mãe, que tanto desejara para ele uma vida normal e tanto fizera para afastá-lo da poesia e da literatura; o que ela diria se soubesse que a sua felicidade dependia de uma mulher de Kars que ajudava no trabalho da cozinha e cortava pão em fatias grossas?“
Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!