“A ordem moral tem as suas leis, que são implacáveis, e sempre se é castigado por infringi-las. Há sobretudo uma, à qual o próprio animal obedece instintivamente, e sempre. É a que nos ordena fugir de qualquer pessoa que nos foi nociva uma primeira vez, com ou sem intenção, voluntária ou involuntariamente. A criatura de quem recebemos dano ou desprazer sempre nos será funesta. Qualquer que seja a sua categoria social, seja qual for o grau de afeição que nos ligue, é forçoso romper com ela, pois nos é enviada pelo nosso génio mau”
“Uma Estreia Na Vida”
A novela “Uma Estreia Na Vida” (Biblioteca Azul, 209 p.), de Honoré de Balzac (1799-1850) compõe o todo do que ficou catalogado como “A Comédia Humana” e foi concluída em fevereiro de 1842, proporcionando uma leitura prazerosa e fluida. Tudo gira em torno de uma viagem de carruagem, coucou, que era puxada por dois cavalos e que admitiam cerca de oito passageiros, com pouco conforto. Pierrotin, dono da diligência, transportará personagens que se conhecem pela proximidade forçada. O principal será o jovem Oscar Husson, que aos 18 anos irá ter uma entrevista com um benfeitor que lhe dará oportunidade de colocação.
Momentos antes do embarque, ele ainda é admoestado pela sua zelosa mãe, que lhe faz reprimendas e diz para ele se comportar. Oscar fica constrangido, ainda mais porque repara que os outros dois jovens cochichavam entre si e faziam troça dessas advertências. Um destes é um pintor. Outro é um aventureiro que se gaba de ter batalhado em muitas guerras ao lado de sultões e reis, tendo conhecido meio mundo. Viaja incógnito um conde, Sr. Sérisy, que vai tratar de um negócio mal administrado pelo seu funcionário, que deveria ser de confiança, mas que lhe vem roubando sistematicamente.

Trata-se de Moreau, que faz as contas ao seu jeito e é de moral duvidosa, acreditando que as subtrações que realiza não são nada demais, justificando-se sempre. Moreau vem a ser o benfeitor da mãe de Oscar, sempre enviando alimentos. Na diligência está também um granjeiro, Léger. O trajeto de Paris a Presles tem uma distância de 224 quilómetros e, atualmente, de automóvel, levaria cerca de duas horas. Mas vamos acompanhar as palestras nessa viagem de convivências forçadas que Balzac nos conta e que, obviamente, levará bem mais tempo.
Oscar é retratado como sendo de caráter fraco. Preguiçoso, vaidoso e um tanto gabarolas, ao invés de ouvir a sua mãe e manter-se discreto, começa a falar e a ridicularizar um certo conde, mal sabendo que o incógnito era o próprio. Pior: conta as histórias ouvidas sorrateiramente do administrador, que falou à sua mãe acerca das suas doenças de pele e outras intimidades conjugais pouco lisonjeiras. O conde apresenta muito sangue-frio, mas na verdade a sua raiva será destinada a Moreau, ao chegar ao castelo.
Diz-lhe que poderia até perdoar as falcatruas financeiras, mas não a indiscrição acerca da sua intimidade. Moreau inflama-se com Oscar e o cata pelas orelhas, despachando-o e mandando-o de volta para a casa da sua mãe, que o recebe desconsolada, ainda mais que o padrasto, que não ia com a cara dele.

Mais reprimendas da mãe e o passo a seguir seria buscar uma ocupação com um possível benfeitor, o tio distante Cardot. O velho Cardot, que já distribuiu a herança aos filhos, reservou para si um tanto para o fim dos seus dias e tem agora gastos exorbitantes com uma jovem dançarina de vida fácil, Florentina. Mas promete dar um empurrão se o descabeçado Oscar entrar em Direito, onde lhe arranjaria estágio e emprego num cartório. Assim é feito.
Interessante aventar as possibilidades de ascensão social naquele período em França: ou o comércio, mas para isso o sujeito deveria ter uma renda vasta; ou o funcionalismo público, sempre destinado aos parentes dos figurões e à gente abonada; o Exército com todos os seus riscos ou algum cargo relacionado com Direito, sendo o advogado um posto menor nesta hierarquia. Intentava-se ser um notário para assim viver de boas rendas.
Vencendo a muito custo a sua indolência, Oscar vai se arrumando. Passa dois anos celibatários até se ver tentado a jogar cartas com dinheiro que não era seu e, mais uma vez, deita tudo a perder: o dinheiro, a sua credibilidade e a confiança do austero patrão Desroches. Desmascarado, ao entrevistar-se com a sua mãe só lhe resta agora as funções militares. Um desfecho heroico o fará perder um braço, numa batalha em África.

Coincidentemente, muitos anos após, e com fisionomias bastante alteradas, esse grupo de viajantes fará o mesmo trajeto e também coincidentemente, o responsável pela carruagem será Pierrotin, que terminará abonado com novas rotas e riqueza nos seus negócios. Com dores, deceções e aprendizados, o caráter de Oscar irá moldar-se e terminará com a sábia lição de que na vida podemos aprender de dois modos: pelo amor e pela dor, tendo Oscar aprendido por intermédio desta última.
Marca característica de Balzac, quando faz os seus personagens transitarem entre os seus romances, o certo é que é um livro que nos prende a atenção pelas passagens cómicas e ficamos sempre a perceber a faceta zombeteira do seu artífice. Mais uma obra magistral que me faz reconhecer a excelência daquele que tão bem soube narrar os podres e as glórias da sociedade da sua época. Se parte chata existe, e existe, é para o aproveitamento de tudo o que ele coloca em seus romances.
Só para terem uma ideia: num processo judicial que moveram contra ele, por dívidas, Balzac publicou tudo como se fosse ficção no excecional “Ilusões Perdidas” e aqui somos obrigados a ler atas cartoriais dos novatos que chegavam ao escritório onde Oscar trabalhou. Nessas leituras, quase adormeci. Mas ao génio, perdoa-se tudo.
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