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Porque A Arte Somos Nós

Podem ler a primeira parte do trabalho “A Mensagem de Fernando Pessoa” aqui!

No caso da filosofia, a vontade de a tudo descobrir, que é seu motor, é uma vontade equivalente à vontade de cruzar o mar. E quando nos deixamos conduzir por ela, é presumível que também aqui aca­bemos descobrindo que o mundo não é como supomos. Pois, se desco­bríssemos que o mundo é como supomos, que sentido teria o caminhar e a vontade de descobrir?

Então, por um raciocínio simples e plena­mente lógico, se queremos descobrir, e se o medo é resultado de desco­brirmos que o mundo não é como supomos, concluímos que o medo está no caminho também da filosofia. E de facto está. E foi ele que nos frustrou, no caso da visão sistémica. Mas, se a “verdade” está no todo, teremos de voltar a ele, se a queremos descobrir. Nesse caso, teremos de enfrentar a frustração e o medo. E no meio deste enfrentamento, teremos de obter uma nova iluminação do mundo.

Essa nova iluminação do mundo deve nos permitir ver onde foi que o sistema hegeliano falhou. Resumidamente, o sistema hegeliano falhou por fundar-se num tempo e num lugar que gerou um sistema falhado, no que tange a conduzir-nos concretamente para o “lugar da verdade”. A língua alemã e o tempo de Hegel só nos puderam conduzir para uma antecipação reflexiva desta verdade que está na totalidade.

Neste sentido, ele foi o ápice do caminho aberto pelos gregos, um ca­minho preconizado primeiramente por Parmênides, quando nos aconselhou a nos ocuparmos somente com o ser, que é, ou seja, com aquilo que pode ser pensado pela razão especulativa. Acolhendo a tese de Parmênides, Sócrates deu início à dialética, e à filosofia como atividade predominantemente especulativa.

Contudo, para dar pleno acabamento à afirmação de Hegel, da verdade estar no todo, temos de sair da simples especulação e agregar a ela uma práxis que lhe dê acaba­mento, para que esse todo seja realmente todo. E tal práxis que se descortina daí exige uma “compreensão” em relação ao outro e uma tolerância que o tempo e o lugar de Hegel não puderam nem poderiam implementar.

Mas, se o pensamento hegeliano não nos conduziu plenamente à verdade, ele ao menos antecipou-a reflexivamente. Justamente por isso, Hegel foi o primeiro que retornou a Heráclito, recuperando-o da derrota para Parmênides. O não-ser, que fora deixado de lado desde os pré-socráticos, teria de voltar de novo para de alguma forma devolver a vida e a fluidez a uma filosofia que resultou demasiadamente sólida e presa de uma razão despótica.

Heráclito representado na pintura de Rafael Sanzio, “Escola de Atenas” (1509-1510)

Uma razão que divide o mundo em pedaços e tenta dissecá-lo, mas não percebe que a sua ação de “análise” já lhe tirou a vida desde o início. E como detém o monopólio da palavra e do real, ela desmerece e torna “mal-dito” aquele que tenta desafiá-la, com a intenção de trazer de volta aquela antiga fluidez.

Se olharmos para o modo como se processa a evolução, veremos que algo nunca acontece de imediato, antes é anunciado de uma forma ou de outra, como se a natureza fizesse preliminarmente um “ensaio do futuro”. Apenas para exemplificar, vemos isso nas macromoléculas, que simulam as futuras células, e também no “pseudorraciocínio” dos primatas.

Nesta perspetiva, o pensamento de Hegel é antes este “ensaio da verdade”, ou seja, uma antecipação reflexiva de uma totalidade que ainda cabe fazer-se cumprir em todas as suas possibilidades. E do mesmo modo como a esfericidade da Terra foi percebida primeiro reflexivamente, sendo realizada somente depois, mudando o mundo, aqui também o pensamento hegeliano é esta antecipação de algo que ainda cabe acontecer.

Então, se o tempo e a língua de Hegel originaram um sistema falhado, tal sistema é falho apenas do ponto de vista do próprio sistema hege­liano, que estava ele mesmo submetido a uma cegueira inerente a tal sistema. Pois Hegel viu-se, e ao seu pensamento, como um fim em si, quan­do na verdade ele era um meio, e era esse o seu sentido: ser a ante­cipação de algo que nem ele nem o seu tempo e lugar poderiam realizar. Tal equívoco se percebe, entre outros pontos do pensamento hegeliano, na famosa frase da introdução da Filosofia do Direito, qual seja:

Quando a filosofia pinta cinza sobre o grisalho,

uma forma de vida já envelheceu e, com a cinza

sobre cinza, não se pode rejuvenescer, apenas reconhecer;

A coruja de Minerva alça seu voo

somente com o início do crepúsculo.

Se entendermos que esta frase nega à filosofia a possibilidade de se antecipar aos acontecimentos, vemos aqui como Hegel não percebeu a capacidade que tem a reflexão de ser, prioritariamente, uma simulação de uma realidade possível. Em vista das suas contingências, formadas pelo seu tempo e pela sua pátria, Hegel estava demasiadamente preso à razão especulativa para poder admitir uma capacidade assim para a intuição. Não pôde perceber então que o seu tempo e lugar – bem como ele, como produto daqueles – foram antes os anunciadores de um possível futuro do que o ápice final da evolução.

Fernando Pessoa

Se continuarmos no paralelo entre o descobrimento da América e esse “descobrimento da verdade”, poderíamos ver que nos dias atuais existe um território que falta descobrir (o “encoberto” de Fernando Pessoa?), como existia o mar. Na contraposição com o mundo que consideramos real, e que poderíamos denominar “concreto”, este território a descobrir seria “o abstrato”.

O medo do mar possui igualmente o equivalente “medo da perda da razão”, que assola os modernos até aos dias de hoje. E, assim como existia a perceção reflexiva da esfericidade da Terra, existe hoje a perceção, na filosofia e nas ciências humanas, de que a razão deve ser ultrapassada. Então, deveríamos perguntar: como poderíamos fazer uma nave para cruzar o mar do abstrato? E a quem cabe esse fado de liderar com esse possível novo descobrimento?

Bem, se a evolução se dá primeiro como anúncio, podemos entender a conquista do Novo Mundo também como este ensaio que se fez para um descobrimento que ainda não aconteceu de todo, e justamente, por ter sido um ensaio, “falta cumprir-se Portugal!”. Neste caso, existiu lá naquele ensaio uma escola, na qual nos podemos mirar, o que levou para a prática aquilo que a teoria já havia vislumbrado.

Uma escola que levou em conta o conhecimento teórico do seu tempo, mas apenas no interesse do seu intento de cruzar o mar. Com isso, ela jogou no lixo boa parte da especulação e do imaginário da sua época, mas salvou a essência deles, fazendo a roda do mundo girar mais uma volta: foi a Escola de Sagres.

O facto de ter sido Portugal a liderar a conquista do novo mundo mostra-nos que essa cultura de ousados navegadores cresce diante do desafio do descobrimento. E isso deve-se a ser uma cultura que viceja no fim da Europa, de modo a se alçar no momento de fazer a transição para outra possibilidade. O próprio idioma português se presta a perceber a virtualidade do nosso mundo, pois nele ser e estar são dois verbos distintos, o que denota a diferença entre esse mesmo mundo e uma possível outra esfera.

Também, o sujeito oculto que existe no idioma português, assim como no latim e no grego antigo, é um vestígio de uma realidade que quer novamente fazer-se ouvir: não há de facto algo como sujeito e objeto, antes são ilusões pregadas pelo monopólio da razão especulativa. Estas características do idioma português o mantêm próximo às línguas antigas, e permite-lhe misturar, como faziam os antigos, o natural com o sobrenatural.

E, justamente, o que precisamos que a filosofia faça agora é trazer o sobrenatural – outro nome do não-ser – novamente para dentro do território do real. Fazer isso sim é dar pleno acabamento à afirmação de estar a verdade no todo, pois o todo não se resume ao ser, o qual a razão especulativa nos dá acesso. Hegel deu-se conta disso, em parte, quando rondou a possibilidade de uma “outra racionalidade”. Porém, ele não conseguiu ir até o fim nesse caminho, em vista das suas contingências.

Mas nós não somos Hegel e, talvez, a partir deste ponto de vista, possamos decifrar Fernando Pessoa de modo a nos pormos a caminho em direção a uma certa “Distância”. Uma Distância cuja conquista poderá representar de facto o descobrimento de um novo mundo, que está aqui mesmo, e agora, mas que resultou encoberto pela cegueira inerente à nossa forma de constituir o mundo.

PRECE

Senhor, a noite veio e a alma é vil.

Tanta foi a tormenta e a vontade!

Restam-nos hoje, no silêncio hostil,

O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,

Se ainda há vida ainda não é finda.

O frio morto em cinzas a ocultou:

A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –

Com que a chama do esforço se remoça,

E outra vez conquistaremos a Distância –

Do mar ou outra, mas que seja nossa!

João Batista Mezzomo

João Batista Mezzomo nasceu em São Domingos do Sul, interior do Estado do Rio Grande do Sul, em 21 de novembro de 1959. Este é engenheiro elétrico, formando em Economia e filósofo, com formação pela PUC, tendo escrito um tratado de filosofia intitulado “Quem tem ouvidos” (publicado pela Besouro Box, de Porto Alegre, em 2010), de forma independente. Nos últimos 10 anos, o livro foi lido, comentado e resenhado, angariando o escritor louros pelo seu feito.

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