OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

(Baseado no prefácio da obra “Quem tem ouvidos“, do autor João Batista Mezzomo)

Da primeira vez que o poema “Mensagem” de Fernando Pessoa me caiu às mãos, causou-me impacto uma certa mensagem oculta nos seus versos. Do que estaria Pessoa falando? Que mensagem era essa que procurava nos passar? Qual destino grandioso teria a nação lusa que ainda falta cumprir-se?

À época tinha eu 30 anos e era um jovem repleto de curiosidade. O que mudou nesse tempo passado é eu ter me tornado um homem maduro repleto de curiosidade. Mas também, acredito que nesses 30 anos que se passaram eu tenha conseguido avançar um pouco na solução dessa mensagem posta por Pessoa dentro de uma metafórica garrafa solta num metafórico mar.

Acredito que Pessoa teve uma inspiração sobre esse grandioso fado português, do modo como os artistas têm esse tipo de inspiração, mas, também como ocorre na arte, ele não conseguiu trazer o todo desse achado para o mundo, de modo a torná-lo plenamente consciente. É que a arte costuma antecipar com pinceladas algo que levaríamos muito tempo para traduzir num “discurso racional”.

A respeito, Martin Heidegger fala-nos que a arte vem antes de tudo, o sobre ela funda-se o mundo. Assistimos isso no âmbito coletivo, quando o Renascimento antecipou na arte a Idade Moderna, que só se tornou filosofia no Iluminismo. Assim, Pessoa, “esse poeta que ainda cabe à nação portuguesa desvendar” (como disse o mesmo Hiedegger a respeito de Holderling e da nação alemã), enviou-nos uma mensagem, e ela ainda está à espera de ser decifrada.

Martin Heidegger

Tentemos fazer isso a partir de uns versos de “Mensagem”, os que falam de Dom Sebastião, “louco, sim, louco, porque quis grandeza“:

Grécia, Roma, cristandade

Europa – os quatro se vão

Para onde vai toda a idade

Quem vem viver a verdade

Que morreu Dom Sebastião?

Que verdade seria essa a que Pessoa se refere, e que andaria temerariamente próxima da loucura? A minha hipótese é que ela é a mesma verdade que Hegel nos disse residir no todo, de modo a nos conduzir a perigosos pântanos, sob a consideração da razão, a qual divide o mundo em partes, ou, o “analisa” [1]. Podemos sim, na consideração do todo, “perder e razão”.

[1] Analisar significava, ao tempo do nascimento da palavra, o processo de separar em partes, como quando separamos o trigo da sua casca, jogando-o ao vento após ser batido.

Por essas e por outras, o ponto de vista sistémico encontra-se, na filosofia dos dias atuais, “fora de moda”. Tal ponto de vista decaiu no conceito dos filósofos, justamente pela frustração que aquele pensamento e as suas implicações posteriores geraram. Acreditamos, no entanto, que Hegel tinha razão quando sustentou que “a verdade está no todo”. E se é verdade que a “verdade” está no todo, é possível que o ser humano tenha de encará-lo novamente, ainda que se tenha frustrado quando tentou fazê-lo pela última vez.

Dissemos “é possível”, pois também é possível que esteja fora das pretensões ou das possibilidades do ser humano encarar essa “verdade”. Se for isso, a nossa hipótese é vazia e sem sentido, e resta para a filosofia apenas as abordagens parciais, e para o ser humano viver na ignorância em relação a certas questões fundamentais da existência, até o dia em que a espécie humana desapareça da face da Terra. Não obstante, acreditamos não ser assim, e que apenas estamos frustrados pela nossa última tentativa infrutífera.

Hegel

Quando nos frustramos, é porque existe lá algo que desejamos. E se nos frustramos, significa também que não fomos bem-sucedidos quando intentamos satisfazer o nosso desejo, e que lá onde estava o desejo ficou o medo. Acontece que não podemos anular o que deseja­mos e, presumivelmente, se desejamos é para que busquemos. Logo, é possível que um dia tenhamos de enfrentar de novo aquele medo, que surgiu da frustração. Essa é uma lei que vale para o indivíduo e para a vida individual. Mas nela podemos sempre fugir deste enfrentamento e “deixar assim”, até morrer com alguns medos incólumes.

Neste particular, porém, o que vale para o indivíduo vale também para o coletivo, com a diferença de que, possivelmente, no coletivo acontecerá tudo aquilo que está no nosso caminho, ainda que individualmente seja humanamente impossível fazer um enfrentamento pleno. De tal forma que, se a visão sistémica resultou em medo e frustração, se é verdade que a “verdade” está no todo, e se é um facto que desejamos descobrir a “verdade”, então é possível que tenhamos de enfrentar coletivamente essa frustração e esse medo, para que tentemos novamente nos pôr a caminho em direção da tal “verdade”.

Cabe aqui perguntar, que relação teria tal “verdade” com o que queremos, ou seja, com a realização dos nossos desejos enquanto indivíduos e enquanto humanidade? Ora, presumivelmente, buscamos o conhecimento para sermos felizes, pois ninguém quer viver ou morrer na escuridão. Ou seja, o que o ser humano busca, independentemente da época e lugar, é ser feliz, e, se ele quer descobrir coisas que desconhece, é claro que ele busca o conhecimento para se tornar livre, para viver mais e ser mais feliz. Num limite mesmo, ele quer viver eternamente, e uma vida plena de felicidade.

À luz da razão, isso parece fora de cogitação, pois ela mostra-nos que tudo o que vive morre. Porém, essa “verdade” que segundo Hegel reside no todo, é possível que venha a conduzir-nos a um conhecimento que vá além da razão e que permita descobrir que o que parece impossível sob a sua luz seja possível sob outra. Pois, a rigor, tudo é possível. Por isso mesmo, quando saímos em busca da realização dos nossos desejos, pode suceder que descubramos que o mundo não é como supomos.

Pois se tudo é possível, e se suspeitamos disso, pode ocorrer que a nossa busca desmascare este facto e nos leve a algum grau de desmanche do mundo que consideramos real. Neste caso, deparamo-nos com aquele inimigo, que sempre está à espreita ao lado do caminho: o medo. Ele não é o nosso único inimigo, mas certamente é o primeiro.

Capa da obra de Fernando Pessoa, “Mensagem” (1934)

Para enfrentar o medo, necessitamos de coragem, e para vencê-lo, de clareza. Uma clareza que vem da persistência, que vem ela mesma da coragem. Usando uma imagem conhecida e absolutamente pertinente com a “mensagem” de Pessoa, o medo do mar que acometia o ser humano só foi vencido quando ele percebeu que a Terra era redonda e, portanto, a navegação no mar não conduziria ao abismo, ainda que ela importe algum perigo. Ele percebeu isso, num primeiro momento, de maneira apenas reflexiva.

Do ponto em que percebeu a esfericidade da Terra reflexivamente até ao ponto em que trouxe esta constatação para a realidade prática, dando início à conquista da América e à Era Moderna, houve um período em que o velho medo ainda assolava a mente e rondava o mundo medieval. Mas, depois o ser humano levou à prática aquilo que já percebera reflexivamente, a Terra “emergiu redonda do azul profundo”, como nos diz Fernando Pessoa, na metafórica mensagem posta numa metafórica garrafa.

A ação concreta do descobrimento trouxe um mundo agora iluminado por uma nova luz e expulsou para longe aquele medo medieval. Mas era só o início de um novo momento, com os seus desafios, os seus quereres, as suas frustrações e os seus medos.

Olhemos agora para esse medo que tomou conta do ser humano na Idade Média. Ele era um medo específico, inerente a uma sociedade e a um momento histórico específicos. No entanto, ele era medo, e nasceu como nascem todos os medos. E todo o medo surge por descobrirmos que o mundo não é como supomos. Então, a sociedade medieval foi assolada pelo medo quando percebeu que o mundo não era como esta supunha. Duas visões antigas (a tradição grega e a judaico-cristã) cruzaram-se naquele ponto histórico, e o mundo, que era sólido, se desmanchou.

Mas além do medo este cruzamento trouxe uma capacidade de lidar de outro modo com as coisas. Aos poucos, a sociedade medieval venceu o medo e deu vazão à sua curiosidade e à sua vontade de conquistar um “outro mundo”, que pretensamente existia depois do mar. Então, a Terra se iluminou com outra luz, outra clareza. A partir daí, nunca mais a civilização ocidental-europeia temerá o mar, ao menos naquele nível, e ao menos aquele mar.

João Batista Mezzomo

Não percam a segunda parte deste trabalho, porque nós também não!

João Batista Mezzomo nasceu em São Domingos do Sul, interior do Estado do Rio Grande do Sul, em 21 de novembro de 1959. Este é engenheiro elétrico, formando em Economia e filósofo, com formação pela PUC, tendo escrito um tratado de filosofia intitulado “Quem tem ouvidos” (publicado pela Besouro Box, de Porto Alegre, em 2010), de forma independente. Nos últimos 10 anos, o livro foi lido, comentado e resenhado, angariando o escritor louros pelo seu feito.

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