O filósofo Roger Pol-Droit, ao entrevistar Michel Foucault (1926-1984), perguntou como ele se definiria. Psicólogo? Historiador? Filósofo? Foucault riu e respondeu ser um “pirotécnico”. Indefinível cidadão, isso é certo, mas Foucault foi o estandarte da inteligência francesa no mundo pop (na melhor aceção da palavra, a da filosofia pop deleuziana), substituindo o também pirotécnico Jean-Paul Sartre (1905-1980).
“Vigiar e Punir” (Editora Vozes, 2007, 288 p.) (em francês “Surveiller et Punir“), insere-se numa das fases mais lúcidas do autor, publicado no ano de 1975. Neste, ele investiga o sistema carcerário penal, busca as origens da reclusão dos ditos “cidadãos desajustados” e analisa profundamente todas as nuances do poder, numa visão bem minimalista que ficou conhecida como a “Microfísica do Poder”. Dividido em quatro partes (Suplício, Punição, Disciplina e Prisão), o livro descreve a origem histórica do que atualmente sabemos ser uma penitenciária. Aí quem desponta é o Foucault histórico, mas bem mais analítico do que um professor tradicional. Trata-se de um historiador que pensa, que critica, que julga.
O pensador delimita uma época, a do Modernismo advindo do Renascimento e a consequente ascensão da burguesia, a constituição das cidades e das leis (um marco muito ténue ainda). À força do exemplo, os “cidadãos desajustados” serão os insurgentes dessa necessidade de uma lei em comum. E como tal, serão punidos. Uma ordem instaurada e que não permite controvérsias reage com truculência contra esses insurgentes.

Exemplo mais claro é a Santa Inquisição, braço direito da Igreja Católica que dialoga com os argumentos do fogo e da lenha. Se nos lembramos de um filme medieval, associaremos a imagem do suplício a que eram acometidas as “bruxas” e os “hereges”. A regra é essa: não bastava encarcerar e matar, a necessidade é o sofrimento purgado, a título de exemplo para os outros habitantes da vila. Esse exemplo pusilânime caracteriza-se como eficaz, tanto é que esses suplícios atraem grande público, notadamente da população mais pobre e um facto chama a atenção de Foucault: a questão do corpo supliciado.
Como entender tanta selvageria, não só do poder constituído pela Igreja, mas da ordem vigente, com a mutilação dos corpos? Porquê essa barbárie? O poder constituído apodera-se do corpo de cada cidadão. Esse corpo pertence-lhe. Foucault questiona-se acerca dos reais motivos para a mutilação de um corpo sem vida.
Vamos trazer um exemplo para o Brasil Colónia? Qual foi a necessidade de um cavalo arrastar o corpo do nosso mártir Joaquim José da Silva Xavier (o Tiradentes) pelas ruas afora, estando ele já morto? Se a cabeça decepada de Tiradentes ficou no poste mais alto de onde se situa hoje a Praça com o seu nome, foi motivado pelo exemplo. Como se a Coroa portuguesa afirmasse: “Estão a ver, é isso o que acontece com os traidores”.
Passa-se um período de tempo e assistimos então a um crescente desconforto da população com esses suplícios. Há alguns enfrentamentos, desordem generalizada e outras ocorrências que fazem o poder privilegiar uma pena mais impessoal concedida ao Judiciário. Este irá punir, mas sem a caracterização do espetáculo. É onde a Justiça se liberta um pouco do Poder Monárquico, mas não se enganem: ele ainda reflete a lei que é a do consenso, de uma vida regrada, de uma lei instaurada pelo poder. A punição leva a uma mitigação das penas, a uma indulgência, cito:
“Não teremos sucesso trancando os mendigos em prisões infectas que são antes cloacas [será preciso obrigá-los ao trabalho]. Empregá-lo é a melhor maneira de puni-los“
Isso tudo contextualizado no início da Revolução Francesa e com a Constituinte. Trata-se do Código Penal de 1791. Mesmo “apenado”, o cidadão não perdia a característica de modelo e exemplo. Não foram poucas as vezes em que crianças visitaram as prisões para terem uma ideia exata do que lhes aconteceria se fizessem a incursão ao mundo delinquente. Contudo, o que se verifica é que a lei não é consensual a todos. A linha é mais ténue ao passar de um mundo certificado como justo ou injusto.
Só para citarmos um exemplo, quem não conhece a história de Edmond Dantes, o famoso “Conde de Monte Cristo” (belíssima narrativa de Alexandre Dumas)? A trama e a vingança do Conde são contra todos aqueles que o condenaram injustamente e que não à toa representam a Justiça, a Ordem e as Leis. Enquanto Conde (numa identidade alterada), ele participa da boa sociedade jogando as “pessoas honradas” (aos olhos comuns) umas contra as outras. Assiste impassível a derrocada dessa sociedade dissimulada.

Mas o que aos olhos juvenis pode ser entendido como heroísmo, numa análise fria e imparcial faz ver que o Conde de Monte Cristo será sempre um pária nessa sociedade, pois camufla a própria identidade. As circunstâncias da vida fizeram-no enterrar Edmond Dantes na prisão a que fora sentenciado. Foucault analisa bem a questão da aplicabilidade das leis, atestando o poder controlador que a mesma passa a exercer sobre a população.
Historicamente falando, no bojo das duas grandes Revoluções (Francesa e Industrial) faz ver uma nova modalidade de controlo sobre cada indivíduo. Mais precisamente a Revolução Industrial, que cria a figura do operário, aquele que opera o mecanismo cada vez mais fragmentado das produções em série. A ordem vigente insere a figura modelo do operário, aquele que trabalha para o dono do capital. Não iremos aqui aludir a Karl Marx (1818-1883), a problemática é outra. Entra aí o aspeto da disciplina nesse homem de bem. Que serve ao propósito dos capitalistas e capital. Sabe a visão das crianças sentadas disciplinadamente em bancos escolares? Pois bem, aprendem desde cedo a transformarem-se em funcionários.
“Funcionários que fazem funcionar”, são elementos diminutos nesse espectro maior que é a sociedade. Faz nascer o protótipo contrário, o que leva um sujeito pouco afeito ao trabalho ganhar o nome de vadio. A junção dos nomes “vadio” e “delinquente” requer menos do que um passo. Um mau exemplo para a sociedade que se deseja organizada. A indisciplina é falta grave, passível de punição. E essa disciplina verifica-se em todas as ramificações da sociedade. Não somente nas escolas com as suas leis, mas os hospitais com os seus estatutos, a Igreja e os seus Mandamentos, uma teia sócio organizacional que é um germe das prisões, com a atuação policial dos seus membros.

E é a prisão que encerra o trabalho de Foucault em “Vigiar e Punir”. A penitenciária e os seus códigos próprios para transformar um infrator em delinquente. A vigilância individualizada, embrião das penitenciárias de segurança máxima, a prisão com os seus muros e grades, mas com o uso da Psicologia da Medicina e da Filosofia como cúmplices a este combate ao desertor, aquele que não comunga os ditames da lei e que transgride as normas roubando, assassinando, violando.
Facto a salutar em Foucault é a ausência de ideologia adaptada. Ao analisar o poder sob o microscópio de um raio X, ele não quer abordar o facto de forma anarquista. Foucault também entende a importância do poder, a ver o seguinte depoimento, cito:
“Se poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer – e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz.“
Termino esse pequeno ensaio convidando os ditos agentes da lei e outros a lerem este livro. Excelente!
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One thought on ““Vigiar e Punir”: Um relato da história da violência nas prisões”