OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961) é um escritor francês muito fácil de se detestar. Rotulado de mau-caráter, antissemita e colaboracionista quando da invasão da França pelos nazis, o seu livro mais conhecido é “Viagem ao fim da Noite“. Foi na Livraria do CCBB de Belo Horizonte que adquiri a obra alvo desta crítica. Publicada pela Companhia das Letras, com 433 páginas, “De Castelo em Castelo” é um relato autobiográfico contundente e que apresenta uma inovação na forma de escrever do autor, e que abusa das frases entre-cortadas pelos três pontinhos (reticências). São muitos.

O livro é um soco no estômago. Com frases corrosivas e impiedosas, Céline narra o seu exercício de médico, num castelo na Dinamarca transformado em hospital e que era comandado pelos alemães. Essa rememoração é intercalada com a época da escrita da obra, quando ele é um médico de periferia às margens do Sena que só atende à população de baixa renda e não cobra pelas suas consultas. Esqueçam essa necessidade de ser filantropo do médico-escritor.

Ele não deseja posar de santinho, ainda para mais já era proscrito pelas celebridades das letras francesas, principalmente Jean-Paul Sartre (1905-1980). Sobra adjetivos poucos lisonjeiros ao autor de “A Náusea“: “burguês cem por cento canalha”, “nata da cloaca”, “piolho zarolho”, e muitos outros. Após o fim da desocupação alemã na França (e consequentemente o fim da Segunda Guerra Mundial), inicia-se o período de caça às bruxas e Céline torna-se o alvo perfeito. Fugiu da sua residência e teve os bens saqueados, por uma turba enfurecida. Daí o retiro na periferia e no anonimato, só conseguindo certa tolerância (pelo menos ao facto de existir) tempos depois.

Essa vida caótica, retratada nos seus livros, pode significar que o autor procurou estar em paz consigo e com os outros. Nada disso. Não querendo angariar piedade, manteve-se firme nas suas posições e contrariamente, os seus livros chamavam bastante a atenção, sendo já bastante conhecidos em vida, porém sabotados. E é aí que entra a indignação do autor, que sob a oferta de dois editores, tem vontade de mandar os mesmos às favas e detona a prática inescrupulosa de livreiros que sabotam a exposição das suas obras nas vitrines sob a anuência dos editores.

Louis-Ferdinand Céline

Reconhecido como um inovador da forma (os famosos três pontinhos) e a linguagem crua, Céline reconhece a impossibilidade de vir a ganhar um Nobel. Cito: “De repente, assim, uma ideia!… será que eles me dariam um Prémio Nobel?… Seria uma mão na roda para o gás, as cotizações, as cenouras!… mas os veados daquele país lá do alto vão me dar droga nenhuma! nem o Rei deles! isso é para todos os baitolas possíveis e imagináveis!… é! para os mais vaselinados do Planeta!… qual é a dúvida! A sorte já está lançada!… basta ter visto o Mauriac, de fraque, inclinando-se, que nem uma dobradiça, prontinho, radiante, oferecendo-se, em cima da sua plataformazinha… nem um pouco encabulado!

Céline descreve sofrer preconceitos por exercer a profissão de médico e ser ele mesmo quem vai fazer as suas compras de mercado e a pé, pois não possuía automóvel. Nesse aspecto observamos que os códigos de status em França na década de 1950 e a nossa sociedade capitalista, consumista e de aparências mudaram pouco. Deve ser por isso que lhe sobrava apenas os pacientes pobres e desvalidos. E Céline, através dos seus relatos, demonstra conhecer e bem a medicina e de facto, ser um excelente médico.

Um indivíduo que dificilmente eu convidaria a tomar uma xícara de café, proscrito pelo cânone literário francês, confessadamente antissemita e difícil de engolir. Detestável! Mas, nesses casos onde vida e obra se diferenciam, reconheço ser um escritor que desempenha o seu ofício com sentimentos, tudo bem que por vezes, viscerais. Definitivamente, um autor que não passa despercebido.

O trecho que separei a seguir revela-nos um Céline super amoroso. Com sua mulher? Não! Com os seus pacientes? Tampouco! Com os seus leitores? Também não! E sim com a sua cachorrinha. Esse ponto fora da curva (demonstração de sentimento) fez-me recordar da cadelinha Baleia, de “Vidas Secas“, de Graciliano Ramos.

Graciliano Ramos

Leiam “De Castelo em Castelo”. Se não servir para nada, ao menos desopilará o seu fígado. Recomendo.

Trecho do livro:

A Bessy, está enterrada aí defronte, no jardim, vejo o montinho… sofreu às pampas para morrer… de um câncer, creio… só quis morrer ali, fora… eu segurava a cabeça dela… beijei-a até o final… era realmente um bicho esplêndido… uma alegria olhá-la… uma alegria vibrante… como era bonita!… nem um defeito… pelo, porte, altivez… ah, nos Concursos nada chega perto!…

É um facto, sempre penso nela, mesmo agora com febre… primeiro, não consigo me distanciar de nada, nem de uma lembrança, nem de uma pessoa, com mais razão ainda de uma cadela… tenho o dom de ser fiel… fiel, responsável… responsável por tudo!… uma verdadeira doença… o antidane-se… o mundo é um regalo!… os bichos são inocentes, mesmo os fujões como a Bessy… nas matilhas, são mortos…

Posso dizer que a amei muito, com suas escapadas loucas, não a trocaria por todo o ouro do mundo… muito menos o Bébert, que no entanto é o pior e mais raivoso bichano estraçalhador, um tigre!… mas muito afetivo, em seus momentos… e tremendamente apegado! como percebi por toda a Alemanha… fidelidade de fera…

Em Meudon, eu logo via, a Bessy sentia saudades da Dinamarca… nada de bordejos em Meudon!… nem uma corça!… talvez um coelho?… talvez!… levei-a ao bosque de Saint-Cloud… que ela corresse um pouco… farejou… zanzou… voltou quase em seguida… dois minutos… nenhuma pista a seguir no bosque de Saint-Cloud!… continuou o passeio connosco, mas de rabo entre as pernas… era uma cadela muito robusta!… era muito infeliz lá em cima, na Dinamarca… de facto, uma vida tão atroz… um frio de menos 25 graus… e sem casinha!… não durante uns dias… meses!… anos!… o Báltico congelado…

De repente, connosco, sentiu-se ótima!… nós lhe dávamos tudo o que havia!… comia igual a nós!… fugia… voltava… nunca uma crítica… por assim dizer, nos primeiros pratos ela comia… quanto mais o mundo fez misérias connosco mais tivemos de mimá-la… e mimamos!… mas sofreu para morrer… eu não queria de jeito nenhum lhe dar uma injeção… aplicar nem mesmo um pinguinho de morfina… ficaria amedrontada com a seringa… nunca sentira medo de mim… tive-a, malíssima, bem uns quinze dias… ah, não se queixava, mas eu via… faltavam-lhe as forças… dormia ao lado da minha cama… a certa altura, de manhã, quis ir lá fora…

tentei deitá-la em cima da palha… logo após o amanhecer… não queria que eu a deitasse… não quis… queria ficar em outro lugar… no lado mais frio da casa e em cima das pedras… deitou-se calmamente… começaram os roncos… era o fim… haviam me dito, eu não acreditava… mas era verdade, estava deitada no sentido da recordação, de onde viera, do Norte, da Dinamarca, o focinho ao norte… cadela a seu modo tão fiel, fiel aos bosques de suas escapadas, Korsor, lá no alto…

fiel também à vida atroz… os bosques de Meudon não lhe diziam nada… morreu após dois… três pequenos estertores… ah, discretíssimos… sem um só lamento… por assim dizer… numa pose de facto muito bonita, como em pleno ímpeto, em fuga… mas de lado, prostrada, acabada… o focinho para as suas florestas das fugas, lá longe de onde vinha, onde sofrera… só Deus sabe!

Ah, vi muitas agonias… aqui… ali… por todo lado… mas nem de longe tão belas, discretas… fieis… o que estraga a agonia dos homens é a pompa… o homem afinal está sempre no palco… até o mais simples…

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 3 out of 4.

Leave a Reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: