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Porque A Arte Somos Nós

“Um habitante da fronteira, um soldado de infantaria devem aprender a encarar a morte; por minha parte, devo aprender a encarar a sobrevida.”


Jean-Paul Sartre, em “Diário de uma guerra estranha”

Caminho por um cenário de guerra. Literalmente. No trajeto a pé, vi tanques russos transformados em sucata, prédios bombardeados e de avenidas arborizadas sobressaía apenas o negrume e as cinzas de um lugar caótico. Adentro um galpão, transformado em quartel-general e, mecanicamente, bato continência. Senhor Dmitri, um proprietário de uma oficina mecânica e conhecido meu, também está ali e me cumprimenta. Certamente o seu negócio foi confiscado ou não mais existe. Agora somos todos homens de guerra, ou, melhor dizendo, fantasmas de guerra, temos que estar preparados para o conflito e a nossa existência se resumirá a portarmos uma arma, nos protegermos com um capacete de metal e contarmos com a sorte de não sermos atacados. Atrás de um balcão, um oficial aponta algumas rifles e meneia a cabeça, fazendo entender que posso pegar uma. Assim o faço e coloco a alça no ombro, sentindo uma vontade enorme de cagar.

Bato outra continência e afirmo ao oficial que preciso de ir ao banheiro. Ele fica indiferente e eu me despeço por ora de ambos. O galpão está quase deserto, chamuscado e bombardeado. Pressinto uma porta que poderia ser um banheiro e vejo a latrina cheia de fezes. O fedor é insuportável. Também pudera! Há dias o abastecimento de água fora cortado e o jeito é tentar um outro lugar para cagar. Pareço que perco a vontade. Mijar é fácil, pode ser de pé e em qualquer outro canto. O oficial irá entender. Discreto, procuro um outro lugar e ao urinar sinto uma ereção ao mesmo tempo. Lembro-me de Ivana, a bolsista a qual me estava apaixonando, se é que entendia ao certo o que significasse esse sentimento. Custo a controlar o fluxo da urina, raciocino que nos transformamos todos em sobreviventes, observando os minutos finais de uma vida sem sentido. Foi preciso a guerra para me absorver de toda a minha existência, pertencimento e assumir uma outra vida que não fosse a de um professor de filosofia angustiado da Universidade Nacional de V. N. Karazin, 47 anos, licenciado agora para trabalhar num livro sobre Jean-Paul Sartre e, estranhamente, antes do conflito, estava lendo “Diário de uma guerra estranha“.

O escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre

Para que servem os intelectuais? Colocaram Sartre como auxiliar de meteorologista no campo de batalha. Devia ter pouco ou nenhum conhecimento acerca de uma arma e o mesmo ocorria comigo. A minha experiência se dera apenas no serviço militar obrigatório, há uns 30 anos, quando empunhava uma rifle de repetição e nos exercícios de tiro me revelei um recruta sofrível. Barulhos de bombas ecoavam perto. Percebi que o galpão era enorme, antes era uma oficina e cumprimentava maquinalmente os meus compatriotas e dentre eles fui admoestado por dois que estavam visivelmente bêbados.

— O senhor também foi chamado… para… para a guerra? – Um deles perguntou, tropeçando.

Não respondi. Pergunta tola. Todos nós havíamos sido chamados para a guerra. Eu preparava coquetéis molotov para abastecer os meus compatriotas na nossa tática de guerrilha. O filho da puta do Putin não discriminava áreas militares de áreas civis, hospitais e orfanatos e tudo o mais se estava transformando num verdadeiro “salve-se quem puder”. Bombardeou a universidade e vi de perto um dos prédios sendo destruído.

Retornei ao primeiro oficial que encontrei e ele informou que estávamos esperando não se sabia exatamente o quê. Ele não era oficial, fora feito oficial da noite para o dia e afirmava, amargurado, que se sentia numa ratoeira à espera de ser bombardeado. Shevchenko era o seu nome e ele puxou conversa:

— Estão destruindo Kharkiv. Antes de chegar aqui, observei prédios inteiros destruídos. Recrutas e voluntários que aqui chegaram relataram áreas de destruição em diferentes pontos da cidade. O parque Gorki está todo arrebentado, a catedral de Assunção também. Os filhos da puta não respeitam nem igrejas.

— É, eu sei.

O senhor Dmitri se aproximou e relatou que também perdera tudo, que a sua oficina fora completamente destruída. Por incrível que possa parecer, não lamentávamos. Apenas atestávamos que o absurdo havia nos encontrado, que a sobrevivência seria o mais importante e que restabelecer as comunicações seria primordial, pois as nossas mulheres e crianças haviam fugido e algumas foram violentadas e mortas. O tempo trabalhara a favor de quem se havia prevenido, levado as ameaças de guerra a sério, mas a verdade é que a quase maioria entendia esse cenário como longe e improvável. Infelizmente, todos estávamos errados.

Como se eu não estivesse ali, Dmitri encetou conversa com Shevchenko:

— O professor aí é um intelectual, sabia? Escreveu livros e tudo.

— É mesmo? Pena que não irá sobrar ninguém para ler os livros dele.

— É verdade – e dirigindo-se a mim – como tem se sentido?

— Estou bem, apesar de atónito. Permitem-me dar um depoimento?

O oficial riu e ironizou:

— Estamos há uma semana nessa ratoeira. O seu relato só será interrompido pelas bombas. Mas pode prosseguir…

— Desculpem-me comemorar o facto de a minha mulher, ou ex, estar em Budapeste. Quando nos separamos, ela levou a nossa filha e o sentimento de saber que elas estão a salvo me tranquiliza um pouco. Aqui no país tenho apenas uma tia e primos distantes. Enfim, só sobrou eu para bucha de canhão.

Dmitri se emocionou e chorou. Controlando-se, deu o seu depoimento:

— Nossa casa foi bombardeada. Minha esposa, completamente destroçada. Mataram os dois cachorros e a minha filha também. Desejei morrer, ou no lugar delas, ou com elas. Como um zombie, aqui estou. Destruíram tudo ao redor e aos poucos vejo nascer em mim um ódio que não consigo controlar. Filhos da puta esses russos! Até há pouco nossos vizinhos e as dissidências se davam apenas no campo das ideias. Somos irmãos, puta merda! Me sedaram para que eu não explodisse. O efeito está passando agora. De tudo o que tinha, só me restou essa bosta de vida!

O oficial se solidarizou e ao saber que eu ensinava filosofia, que tinha inclusive publicado livros, quis saber como me sentia com aquela merda toda. Não sabia se seria interessante palestrar aos dois, e a contínuos mortos-vivos que chegavam para recolherem as suas rifles e alguns pedaços de paus. Tínhamos todo o tempo do mundo, ou não, poderíamos ser metralhados ou bombardeados a qualquer momento, só iniciei quando Dmitri insistiu para que ensinássemos filosofia a eles. Pigarreei. Seguraria a vontade imensa de cagar. E comecei:

— Amigos, coincidentemente, estava a ler “Diário de uma guerra estranha” de um sujeito chamado Sartre. Estava trabalhando num livro sobre ele. Na II Guerra Mundial, quando a Alemanha invadiu a França, ele foi recrutado e deram-lhe como ofício ser um apontador de dados de meteorologia, uma função burocrática e meio sem sentido. Mas do que depreendi da história toda foi o seguinte: apesar de ser contraditório em vários pontos, ele foi coerente com aquilo que pregava. E ele pregava o seguinte: a existência precede a essência. Explico melhor: antes de qualquer idealização do homem, devemos nos acercar da sua existência primeiramente. E observem pelo que estamos passando agora. Num passado não muito longe, estávamos todos ocupados com as nossas vidas, cumprindo as nossas obrigações e existindo. Mas eis que estoura a guerra, esse massacre, melhor dizendo, e cá estamos completamente entregues a defender o nosso país, a nossa nação, a nossa pátria, seja lá o que quer que isso seja. Sartre tem uma frase muito interessante: “O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.” Veja você, Sr. Dmitri, pela experiência dolorosa que passou. E tantos outros.

Os interlocutores franziram o cenho ao mesmo tempo. Era isso que dava querer fazer palestras filosóficas a um público leigo. Pareciam que preferiam ser bombardeados a continuarem me ouvindo. Mas essas impressões foram desfeitas quando Schevchenko apontou o dedo e pediu que continuasse. Dmitri também insistiu. Retomei:

— Sartre ficou conhecido como existencialista, ou seja, aquele que pregava a primazia da existência sobre qualquer idealização de homem. Para ele não tem Deus, outra vida, plano superior. Tudo se contêm aqui mesmo. O homem está entregue à própria sorte, ele é o único responsável pela sua vida e a tudo isso ele afirma que é liberdade. O homem é responsável direto pelas suas escolhas. Ele se faz o tempo inteiro. Tomemos como exemplo nós. Senhor Dmitri eu conheço como dono da oficina. O senhor eu ainda não conhecia. Mas certamente se ocupava de alguma coisa. Observem que de uma hora para outra tudo o que acreditávamos sólidos se esvaiu no ar. Aliás, essa última frase é de Marx. Mas voltando, a vida é um completo absurdo e estamos aqui como testemunhas disso.

Uma bomba caiu próximo. O período da madrugada era o pior, escolhido pelos inimigos para as suas operações. Teve o efeito de revirar os meus intestinos. Agora sim, precisava defecar. Pedi licença aos meus interlocutores e me afastei, arriando as calças e fazendo as minhas necessidades num compartimento sem porta e abandonado. Limpar não podia, intuitivamente levei as mãos a uma serragem e passei na bunda, agora sim, a meleca estava garantida. Esfreguei a seguir as mãos numa peça com graxa e assim se deu a minha precária higiene. “Malditos russos!”

Crescia o fluxo de pessoas no galpão. Como baratas tontas, alguns armados e outros não, alguns preparando os coquetéis e pensei que era muita sorte aquele espaço não ter ido completamente pelos ares, pois estávamos em um verdadeiro barril de pólvora. No início da manhã dois caminhões se apresentaram para carregarem a tropa, ninguém sabia para onde estávamos indo, estávamos indo do nada para lugar nenhum. Manhã gelada na casa dos 2º, sensação térmica bem mais baixa, percebi que o negrume, as cinzas, os ferros retorcidos e árvores e prédios ainda pegando fogo era o cenário que se mostrava. Contemplávamos com o silêncio meditativo de quem luta uma batalha perdida. Éramos sobreviventes e pouco se dava se nos safássemos ou não. Olhares mortiços e amedrontados, a promessa de água potável e um sopão numa vila vizinha e só. “Estamos sós e sem desculpas“, o enunciado de Sartre me acompanhava e também a lembrança do discurso do outro francês, Albert Camus, durante a premiação do Nobel, de que deveríamos nos precaver de um mundo em ruínas. Refleti que ele tinha razão, estávamos nos escombros e com um cheiro nauseante de óleo queimado.

O vencedor do Prémio Nobel da Literatura, Albert Camus

Até que houve o confronto. Mal tivemos tempo de entendermos de onde os disparos estavam sendo dados. Os motoristas foram hábeis ao fazerem uma manobra arriscada e emparelharam os veículos fechando a estrada. Descemos e ficamos atrás. Um avião militar russo vacilou na hora dos disparos e bombas, pois um destacamento de compatriotas estava perto. O aviador nos ignorou. Balas estalavam na carroceria e no metal, eu abaixado pensando que teria que me defender, que teria muito que provavelmente matar alguém, sob pena de morrer. Sentia crescer um ódio, mas contraditoriamente, não era os soldados russos que odiava. Pressentia que eles eram buchas de canhão como nós mesmos, enviados de longe para destruírem uma terra a qual eles nem sabiam direito o motivo. Essa guerra era de gabinete, atendendo a interesses comerciais e económicos e a propaganda e a publicidade se encarregavam de fazer o resto. Tudo era muito rápido, não disparei nenhum tiro, mas me surpreendi com a selvageria dos meus colegas ao avançarem e metralharem os inimigos, alguns colocaram-se em fuga, mas foram caçados como ratos. Como espólio de guerra, colocaram fogo nos tanques e trabalhamos para retirarmos os veículos do caminho. Contamos oito baixas entre os nossos, sendo seis mortos e dois gravemente feridos. Um deles era Dmitri. Ele pediu água, informaram o óbvio, que esperança de água só na vila vizinha e aos poucos ele se afogou no próprio sangue. Vi-o dando o último suspiro. Segurei a sua mão num cumprimento inútil. Senti que ele a apertou e esboçou um sorriso. Parecia feliz de poder morrer junto à sua família. Os corpos foram deixados na estrada, sem sepultura, pois corríamos risco caso a aeronave russa retornasse.

Um caminhão nosso foi danificado, nos reunimos no que sobrou e amontoado seguimos como assassinos zombies de um filme de terror. Um dos nossos colegas exibia um tesouro de guerra, um distintivo russo e se jubilava de ter mandado um vermelho para os quintos dos infernos, os olhos indicavam uma existência justificada, havia matado um inimigo e poderia a partir daí morrer em paz. Bombas continuavam a cair nas redondezas e foi quando percebi que a barbárie nos transforma em animais. Esse era o meu sentimento, aliado ao descrédito da razão, do fracasso do Iluminismo e da inutilidade da Declaração dos Direitos Humanos, puta merda, só tínhamos direito a morrer e quando muito, sobreviver. Nossa civilização envernizada escondia a nossa real natureza, nossa sede de matar, conquistar, ter poder e tudo o mais.

Chegamos ao lugar nenhum. Um casarão abandonado por uma família abastada, metralhada e transformada em quartel, onde um cheiro de sopa invadia as nossas narinas e senti a fome em toda a sua manifestação. Fomos acolhidos e tivemos direito a garrafas d’água, luxo que não tínhamos há mais de dois dias, e no primeiro gole senti uma camada de resíduos descer goela abaixo. O sopão, mais água que legumes, matou-nos a fome e na ordem improvisada do senhor Shevchenko (sim, ele escapara) decidiu que ficaríamos ali por um tempo. Com as comunicações cortadas, estávamos à espera de um rádio para nos dar uma situada no cenário e me felicitei pelo banheiro mais ou menos limpo, com descarga e tudo o mais e enfim pude limpar adequadamente a minha bunda.

Perdi a noção de calendário, de lugar e de outras referências. Por uma das janelas, observei um tremular de bandeira azul e amarela, que somada ao sol que se punha timidamente, aparecendo após longos e tenebrosos dias, coloriu o ambiente com tintas diferentes, que não fosse o negrume e a lama fétida derretida que revelava corpos em decomposição. Como Mathieu ao fim de “A Idade da Razão“, pressentia que, independentemente de qualquer coisa, era um homem acabado…

Marcelo Pereira Rodrigues

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