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Porque A Arte Somos Nós

Geralmente, numa cerimónia dos Óscares, o grande público aposta nos filmes favoritos, nos atores e muitas mulheres ficam de olho nos vestidos que as atrizes usarão para a festa de cerimónia, exceto a deste ano, virtual pelos motivos óbvios. Há aqueles que fazem apostas, estouram a pipoca e ficam à frente da TV a acompanhar tudo. Mais do que merecido o glamour dos Óscares, se um país se pode arvorar a fazer cinema, este são os Estados Unidos da América.

Fazendo uma analogia, o mundo inteiro conhece e joga basquetebol, mas quem possui a NBA são os Estados Unidos. Muitos filmes são tendências e ditam rumos, marcando-nos com o signo de excelência. Amante inveterado da Sétima Arte, embora neófito em comparação aos meus colegas do Barrete, sinto essas cicatrizes após assistir a algumas obras-primas.

Robert De Niro, numa das cerimónias passadas dos Óscares, enquanto apresentava a premiação do Melhor Argumento Original, atribuiu a característica clássica dos profissionais: os escritores que estão sempre a exigir prazos mais alargados e sempre atrasados para entregarem o copião.

Ao assistir a “Mank”, senti-me orgulhoso da minha profissão, pois podem ver quantos filmes quiserem, invejarem os vestidos das atrizes, emocionarem-se com o enredo e com as atuações dos atores, mas a substância de tudo isso são livros e mais livros, desenvolvidos por argumentistas que ficam no anonimato, quase sempre esquecidos após a glamourização da obra, pelo facto de ser natural afirmarmos que a atuação de um ator ou atriz é excecional, mas se não houvesse um bom enredo a coisa desandaria, e digo até mais, não teria pé.

Gary Oldman (Herman Mankiewicz)

Afirmando o óbvio; quem escreve argumentos são os argumentistas, que são escritores e, muitas vezes, dessas ideias desajustadas no papel sairão grandes obras da Sétima Arte. Perdoem-me o preâmbulo, mas não é sempre em que vejo escritores a serem laureados e principalmente quando o filme em questão é candidato aos Óscares (soube disso por alto, nessa mania minha de não me manter informado sobre nada, não sou novidadeiro e aguardo sempre o que é novidade possuir dois ou três meses), mas vamos lá, sou pago para escrever acerca do filme e não sobre as minhas impressões pessoais. Vamos ao trabalho.

“Mank” está disponível na Netflix e no cardápio somos informados que é um dos sérios candidatos aos “prémios mais importantes da Sétima Arte”. Li a premissa dos anos 30 em Hollywood e a película a preto e branco é convidativa, apesar de desafiadora. Quando vi Gary Oldman suspeitei que o crivo da qualidade ali estava, e não errei. Realizado por David Fincher, com Gary Oldman, Amanda Seyfried, Lily Collins, Tom Burke, Ferdinand Kingsley, Jamie McShane, Leven Rambin, entre outros, este drama de 2h11min centra-se na vida do argumentista Herman Mankiewicz (magistralmente interpretado por Oldman) que contratado, está com um tempo exíguo, 90 dias que se transformam em 60, para escrever um argumento para Orson Welles (interpretado por Burke).

Herman está acamado, vítima de um acidente automobilístico, e sua equipa prepara um retiro para que este se possa concentrar na hercúlea tarefa. Inveterado alcoólico, se o seu corpo está todo moído, pelo menos as ideias estão em alta e é isso que vale. Folhas e folhas de rascunhos são atiradas para longe e a sua cama mais parece um depósito de lixo, mas entre ditando à secretária e escrevendo as próprias linhas de pensamento, o certo é que a coisa vai andando, mesmo que ele consiga ludibriar a enfermeira e a secretária de forma a conseguir tomar bebidas alcoólicas.

Amanda Seyfried (Marion Davies)

O flasback sugerindo os anos 30 mostra uma Hollywood incipiente. Herman Mank é um figurão no quesito de argumentistas e contrata auxiliares para a Metro, com um patrão sovina e empresário, acima de tudo. Nada pode soar mais cliché quanto às idiossincrasias do escritor chefe e do seu patrão, os avisos de Mank para que os novatos não se deixem intimidar em frente ao chefe, tomando o cuidado de não serem engolidos a partir do momento em que enfiam a cabeça na boca escancarada do líder, mas até estes clichés interpretados nas cenas ganham uma significância proposta pelo ator principal.

A este, outros atrevimentos são permitidos, esbanjando a sua farta erudição ao chegar de inopino a uma reunião da alta sociedade, toma a palavra e meio bêbado, detona os presentes afirmando que ninguém ali na sala tinha o hábito da leitura, de forma que ao se referir a uma presente atriz como Dulcineia, tem que explicar aos neófitos que não havia sido ele a criar aquela historieta, mas sim um tal de Cervantes. O mesmo vale para George Bernard Shaw, Shakespeare e muitos outros. Certamente um público menos intelectualizado passará por esta película com um sentimento de “estou-me a rir, mas não entendi muito bem”. Fiquei feliz de ter acompanhado todas as sugestões.

O charme do filme são as intencionais marcas de colagens na tela, fazendo-nos acreditar tratar-se de uma produção com 90 anos. E o ser a preto e branco, pois este simples efeito encanta-nos com a significância. Mank é casado e pergunta sempre à mulher porque é que ela o tolera, pois ele assume amores platónicos, dá reiterados vexames públicos e é tolerado pelo seu chefe que vociferando diversas vezes, afirma ser ele um bobo da corte. Ela afirma o óbvio, que sendo casada com ele podia reclamar de tudo, menos de levar uma vida entediante. E isso é facto.

“Mank” (2020)

Parece que as doses de álcool fizeram o efeito desejado e pressionado a entregar o roteiro, e levando Welles a constantes dúvidas, o sujeito consegue, a trancos e barrancos. Mas muda de ideias e diz a este, no ato da entrega, que exigiria os créditos, de forma conjunta. No filme, senti que o interlocutor só não lhe partiu os ossos por pena. Ele sai enfurecido, chateado pelo facto deste não ter respeitado o contrato de confidencialidade, que muitos assumem e está aí o ghost writer que não nos deixa mentir.

Deixei o melhor para o final: se vale uma associação direta de autoria e obra, uma delas é “Citizen Kane” (“O Mundo a Seus Pés“) e Welles. Pois é isto mesmo: o argumento mostrado dentro do argumento do filme, o filme sendo tratado dentro do filme, é “O Mundo a Seus Pés”.

Uma aula de amor à cultura, à literatura e à Sétima Arte, assim defino este filme que me rendeu homenagens assim como a todos nós que escrevemos. Aguarda-nos uma boa história com altas doses de erudição. Estamos a precisar disso, nessa triste época em que muitos energúmenos abdicaram da tarefa de lerem e compreenderem os grandes dramas da Humanidade. Espero não ferir suscetibilidades.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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2 thoughts on ““Mank”: Um filme que faz elegia a nós, escritores

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