OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

Acredito que, pela primeira vez aqui no OBarrete, irei escrever sobre uma obra que não existe. Mas que me caiu nas mãos para ler e degustar, no meu outro trabalho, o de agente literário. Felipe Melo, autor do romance fantástico “Ele Precisava Ir” (este sim existe), 92 páginas, publicado pela Editora Página 42 em 2014, escreveu para a Revista Conhece-te por mais de uma década, quando, no ano passado, pediu para sair do veículo. Foi uma perda significativa, mas Felipe preveniu-me que dentro em breve me entregaria material novo. Mas não pensei que seria um livro, e nem que avançaríamos na nossa relação para a de agente-agenciado. Mãos à obra e pus-me a trabalhar.

Capa da edição 238 da Revista Conhece-te, onde podemos encontrar a entrevista ao escritor Felipe Melo

Extremamente impactado fiquei no final da leitura. Trata-se de livros de contos, com os seguintes títulos: “O Anjo”, “Amor Fati”, “Orgasmo”, “Ferrugem”, “O Bordel”, “Elisabete e a Chuva”, “Mes Demoiselles Possibles”, “A Concessão”, “Amnésia”, “Timidez”, “As Três Irmãs”, “O Costume”, “O Concurso”, “A Obra”, “O Mercado”, “O Padroeiro”, “A Avenida”, “Desistência”, “Lados” e “Inexistência”. O fio condutor dos textos é o forte aspeto onírico presente, o que faz do conjunto surreal. Nada de cartesianismo filosófico aqui prospera. Na recente entrevista para a Revista Conhece-te, o autor tentou elaborar uma sinopse:

Pablo Picasso parece ter dito certa vez que computadores são inúteis porque só podem dar respostas. Eu concordo. As perguntas são sempre muito mais interessantes, então, vou responder apresentando algumas das quais o livro trata. O que aconteceria se o seu anjo da guarda não gostasse de você? Já disse ao espelho tudo que você deseja ao seu pior inimigo? Já se olhou no mesmo espelho e viu outra pessoa? Já teve alguém sonhando os seus sonhos por você? Já foi julgado por essas mesmas pessoas por não os ter alcançado? Quanto de si você jogou fora por opção de terceiros? Você teme olhar os demais nos olhos por medo do que vai ver ou do que eles vão ver?

Gostaria de dialogar com um feto? Já foi punido por seguir as regras? Já se perguntou de onde elas vêm? O que é uma vida bem vivida? Ela vale a pena? Estoicos e existencialistas dizem que devemos amar os nossos destinos. Já se conseguiu apaixonar pela desgraça? Qual é o poder de uma obra de arte? Já se envolveu sexualmente com alguma? Chegaram ao orgasmo? O que é um orgasmo? E talvez a mais importante: essas – ou quaisquer outras – perguntas têm qualquer importância dada a certeza de onde vamos todos parar? Se qualquer dessas questões te interessa, acho que a aquisição da obra poderia ser proveitosa”.

Bom, Felipe entrega o que promete. Lendo o seu 2.º livro, o inexistente, percebi fortes traços dos escritos de Franz Kafka (1883-1924) e aqui vale a ressalva de que Felipe atualmente reside em Praga, na República Checa. Será que caberá a mim o papel de Max Brod (1884-1968), o amigo e editor do autor de “A Metamorfose” que recusou o pedido do amigo para que queimasse todos os seus originais? Sobre a não existência, Felipe não faz muita questão de existir, ao que parece. Fora das redes sociais, concentra seu tempo em escrever, amar e trabalhar, não necessariamente nesta ordem.

Franz Kafka

Arrancar uma fotografia dele é quase trabalho para parteiro, e a fórceps. A exemplo do seu primeiro livro, este “Relatos…” que versa sobre filosofia, comportamento, obras de arte, cães e gatos que conversam com seres humanos e até a infeliz consciência de um feto, com cenas bizarras escatológicas e mais uma gama de perceções e sentimentos, enfim, trata-se de um manuscrito do qual os leitores se irão deleitar com tantos jogos de linguagem e imagens estrambóticas. Uma leitura que não se entrega após o último ponto final.

Fica-nos a incomodar com sentimentos confusos advindos de tanta especulação metafísico-existencial. E aprenderemos novas palavras, tais grilhar, mistura de gritar e gargalhar, e quando pensei que o pronome oblíquo Me no começo da frase soava estranho, fui advertido pelo autor que se trata de um estilo. James Joyce que se cuide!

Que este texto de apresentação a este livro que ainda não existe finque uma bandeira, a exemplo da entrevista para a Revista brasileira, que editores corajosos topem a merecida publicação, pois trata-se de literatura que a posteridade acatará como refinada. É necessário que a nossa atualidade, cheia de existências vazias e mediáticas, aprenda que nem sempre o que parece o é de facto. Este livro, por exemplo, que veio ao mundo já abortado, mas que nascerá milagrosamente como uma genuína obra de arte. Este merece ilustrações à altura (a exemplo do que já ocorreu com “Ele Precisava Ir”) e para um argumento de cinema será prato cheio.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

Nota: este livro ainda não existe…

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