“A Metamorfose” de Franz Kafka (do original “The Metamorphosis“) foi obra de um génio cuja breve passagem pelo mundo (morreu com 42 anos) ficou marcada pela clareza do estilo que contrasta com histórias tenebrosas e mesmo perversas quando analisadas ao pormenor.
Esta obra que, ainda pragmática se demonstra profunda ao nível da interpretação, conta a (breve) história de Gregor Samsa, cuja vida nada tem de interessante: tornou-se caixeiro viajante quando o pai perdeu grande parte da sua fortuna e, desde aí, torna-se o principal sustento da família, uma vez que a irmã é demasiado nova para arranjar emprego e a mãe tem problemas de asma. No entanto, tudo isto sofre um interessante plot twist quando Gregor acorda com a forma de um inseto horrendo. Mesmo agarrando-se à realidade humana que o rodeia, já nada é o mesmo. Apesar de se esperar uma reação louca por parte da família de Gregor, estes reagem com uma naturalidade e tranquilidade assustadoras; acreditam que esta condição de inseto não passa de uma doença grave. Contudo, a maior preocupação não reside no facto de o jovem Samsa se ter transformado num bicho e ter perdido a vida humana, mas sim no facto de terem perdido o seu sustento. A dada altura, a família deixa mesmo de considerar que aquela criatura que habita no quarto de Gregor é o próprio Gregor; continuam a alimentá-lo por uma questão de hábito, como quem alimenta e “cuida” de um animal de estimação de quem não se gosta realmente – e, neste caso, de quem se sente repulsa. Nesta trama toda reside a grande metáfora desta metamorfose: os membros da família de Gregor são os verdadeiros insetos, “parasitas”, até, como diz Vladimir Nabokov no prefácio que escreve para este livro; família consome-o, alimenta-se dele, aproveita-se dele. “Gregor é um ser humano sob um disfarce de inseto; os seus familiares são insetos disfarçados de pessoas.”
Mesmo consciente de que nunca mais voltará à forma humana é, provavelmente, a vontade de se agarrar a pequenas coisas do seu dia-a-dia como pessoa, que Gregor mantém a sanidade durante a vida na casa dos Samsa, como o encostar-se à janela a observar a liberdade que lhe foi retirada, porque, apesar de tudo, a sua consciência e o seu coração ainda são os mesmos, o problema é que mais ninguém parece saber disso. Com a família da Gregor cada vez a desmoronar-se mais e com a visita de três homens que leva a uma cena de caos, parece tudo culminar para a tragédia que, no final da obra, se traduz numa traição. A irmã de Gregor, Grete, que parecia ser a única a demonstrar alguma compaixão pelo inseto – era ela quem o alimentava e a única que entrava no quarto -, acaba por mostrar a sua verdadeira faceta “Não quero pronunciar o nome do meu irmão em frente deste monstro e, por isso digo apenas: temos de tentar livrar-nos dele“, o que acabou por se revelar fatal para Gregor.
Para concluir, o final da obra tem um carácter irónico e mesmo perverso, na medida em que, com a morte do inseto, a vida da família Samsa se tornou mais bela; os três restantes membros – Sr. Samsa, Sra. Samsa e Grete – tiram folga do trabalho e vão passear num bonito dia iluminado pelo sol primaveril.
É de salientar, ainda, que esta obra sob a análise de Nobokov se torna muito mais profunda do que se poderia pensar de uma primeira leitura. Nobokov salienta a simbologia presente na obra, que se traduz na ênfase do número três ao longo desta: três partes, três portas, três homens, três criadas, três cartas, que, muito simplesmente, simboliza a perfeição da arte.
Uma obra de excelência que conquista o leitor pela antítese de uma simplicidade muito complexa, que devemos agradecer a possibilidade de ler hoje a Max Brod, amigo de Kafka a quem este pediu, na hora da sua morte, que queimasse todos os seus textos, o que, claro está, não aconteceu. E para a leitura desta obra uma única sugestão nos deixa Nabokov através das palavras de Lear (“King Lear” de Shakespeare): “Assumir o mistério das coisas“.