Quando há algum tempo lia uma obra de Erling Kagge (norueguês multifacetado, que entre outras ocupações é montanhista, explorador, editor e escritor, muito conhecido por ter sido o primeiro homem a atingir a pé os “três pólos”, Norte, Sul e o pico do Evereste) intitulada “A Arte de Caminhar: Um passo de Cada Vez“, este faz uma alusão a propósito do tempo que demoramos para percorrer uma determinada distância e a forma como encaramos o objectivo escrevendo:
“Tal como a flecha de Zenão – a flecha que nunca chega ao seu destino depois de sair do arco, porque permanece imóvel a cada instante – , tenho a impressão de que nunca alcançarei o ponto de chegada se começar a pensar sobre o meu objectivo. Nunca chegarei à montanha“.
Esta alusão é pertinente na medida em que nos deixa a pensar sobre a relatividade do “tempo”, ao mesmo tempo que encaramos o nosso percurso existencial como uma “distância” que estamos a percorrer num determinado tempo, do qual desconhecemos a sua duração e sem vislumbrar-mos o objectivo, a montanha!
Ainda a este propósito, o autor continua a sua análise trazendo à reflexão um filósofo indiano fundador da escola Madhyamaka (Caminho do Meio), importante tradição da filosofia budista Mahayana, de seu nome Nãgãrjuna. Escreve Erling Kagge: “Nãgãrjuna estava convicto de que o tempo – ou os «três tempos» (trikãla) – não existe, tratando-se antes de uma mistificação. O que já se passou acabou; o que ainda não se passou ainda não começou; e aquilo que estamos a percorrer neste momento constitui uma infinidade de pequenos espaços entre o que já se passou e o que ainda não se passou, pelo que o presente também não existe.
Nãgãrjuna também emprega o caminhar como uma metáfora para o tempo. O passado acabou e não existe; o futuro ainda não começou e, como tal, também não existe; e o presente não é mais do que a fronteira entre ambos, o qual também não tem extensão e, portanto, também não existe – tudo é apenas algo que nós construímos de modo a podermos ordenar os nossos pensamentos.“

Partindo dos pensamentos de Nãgãrjuna, tudo o que nos rodeia é uma incógnita, nomeadamente a nossa existência, uma vez que o que já vivemos não tem existência efectiva pois já acabou e como tal não existe, e o que ainda não vivemos é efectivamente algo de que não podemos falar pois ainda não começou, restando-nos apenas o presente, que como o mesmo designou, não é mais do que uma fronteira entre ambos, passado e futuro! Por outras palavras, o que caminhamos é passado e o que nos falta caminhar é uma permanente incógnita.
O que a nós, seres pensantes, nos permite falar do passado é a memória, que na verdade não passa de um suporte de gravação de factos vividos, ou não, na nossa existência. O que Nãgârjuna nos quer dizer é que vivemos num vazio, não um vazio existencial, mas sim um vazio inerente à nossa deslocação ao longo do tempo sendo que “…tudo é apenas algo que nós construímos de modo a podermos ordenar os nossos pensamentos.”
Voltando à analogia da flecha de Zenão, é muito interessante pensarmos que no limite nunca atingimos ponto nenhum. Tomemos como exemplo uma distância que temos que percorrer, dividindo sucessivamente cada espaço a metade, e depois a metade da metade, e depois a metade da metade e assim sucessivamente… matematicamente nunca atingimos o objectivo pois a subdivisão do espaço resulta num infinito de espaço inatingível. Daí a relação espaço/tempo de que tanto falamos e de que Nãgãjurna já era um mentor.
Por outro lado, a nossa existência é feita de tomadas de decisão permanentes. Se fulano não tivesse decidido atravessar a rua naquele preciso momento, não teria sido atropelado. Talvez, se demorasse mais uns segundos a fazer não sei o quê, teria atravessado a rua sem qualquer problema! Esta premissa é válida para tudo na nossa vida. Isto prova que efectivamente o futuro não existe, pois ainda não aconteceu e as variáveis são infinitas. Não é de todo previsível. Por outro lado, o passado não existe pois está consumado, o fulano decidiu atravessar naquele momento, ponto.
Tantas vezes nos queixamos que não temos tempo, mas na verdade esta é uma afirmação sem conteúdo, pois o que mais temos é tempo. Pensamos demasiado nos dados que retivemos do passado, e pensamos demasiado no que o futuro nos reserva sem ordenarmos os nossos pensamentos no presente. Por outras palavras, o que Nãgãjurna nos diz é que devemos viver tão somente os momentos que unem o passado e o futuro, sem mais nada.
O tempo é, o que fazemos dele.
Pintura de Salvador Dalí, “A Persistência da Memória” (1931)