Dois centenários, uma década e dois anos. Este é o tempo da chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro. Napoleão Bonaparte (1769-1821), o Imperador francês, avançava com o seu poderoso exército invadindo a Europa, e o então Infante Dom João VI (1767-1826) viu-se obrigado a fugir ou a encarar o poderoso exército napoleónico, já que este estava em sangrenta guerra contra Inglaterra, aliada de Portugal.
Tudo isso está descrito no ótimo “1808” (Editora Planeta, 2007, 414 p.), com o sugestivo e elucidativo subtítulo: “Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil“, de Laurentino Gomes, jornalista formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e com cursos nas universidades de Cambridge, em Inglaterra, e Vanderbilt, nos Estados Unidos. Em artigos futuros, prometo ater-me a outros dois dos seus títulos: “1822” e “1889“.
O interessante em “1808” é o tom meio romanceado na descrição dos factos. O autor faz o papel de contador de histórias, embasado em farta documentação e excecional bibliografia. O livro é rico em notas explicativas e traz uma seleção de belíssimas ilustrações em papel de qualidade. Tornou-se um best-seller. Certamente pelo modo de descrever os factos, com bastante leveza e bom humor, relatando sempre casos pitorescos. Diferente da forma maçante e pouco atrativa com a qual alguns professores de História conseguem deixar o ensino chato.
No início do século XIX, Portugal via-se às voltas com uma monarquia perdulária e corrupta. Na contramão de outras regiões europeias, o país de Camões via-se num entroncamento: reformar a sua legislação com os ideais iluministas dos revolucionários franceses (Igualdade, Liberdade e Fraternidade) ou persistir no modelo de monarquia que estava nos estertores, rolando tal a cabeça do rei francês Luís XVI.

Laurentino chama-nos à atenção para o facto de que Portugal estacionara “à sombra” de um passado grandioso advindo do período das Grandes Navegações no século XV – Os Descobrimentos. Trezentos anos depois, Portugal não passava de coadjuvante entre as potências mundiais: Inglaterra e França. Portugal era assim o “primo pobre” de Inglaterra, dependendo desta para manter os altos custos da monarquia que se degringolava com a atuação pífia dos seus representantes.
Em várias passagens da obra, o autor apresenta uma caricatura que na verdade é o retrato de um Príncipe, futuro Rei e um covarde que temia trovoadas, caranguejos e outras coisas. D. João VI vestia-se mal, não gostava de tomar banho e casou-se com Carlota Joaquina (estando ela à época com 10 anos de idade) – foi o Imperador mais corneado da história. D. João, indeciso contumaz, fraco de comando e que em nada fazia lembrar um Rei de facto e de direito, era o contraponto ao caráter firme e decidido de Napoleão Bonaparte.
Esse Portugal caindo aos pedaços, verdadeiro arremedo de uma próspera nação, via-se às voltas com o ultimato de Napoleão que queria o fecho dos portos portugueses aos navios ingleses. D. João ficou entre a cruz e a espada. Aliado dos britânicos, viu-se na difícil situação: “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”. Ficando, teria que encarar o exército napoleónico, pois não cogitava indispor-se com os ingleses. Na verdade, D. João superestimou esse exército. Com bases bem definidas, daria para enfrentar os franceses com chances de vitória.
Isso verificou-se com a chegada dos invasores, cuja delegação mais parecia um bando de maltrapilhos, o que atesta o depoimento do historiador inglês Alan K. Manchester: “Não há exemplo na história de um reino conquistado em tão poucos dias e sem grande resistência como Portugal em 1807“. Adiantando essa narrativa, o leitor irá verificar que D. João optou pela saída estratégica.
Paradoxalmente, o próprio Napoleão confessaria mais tarde que o monarca português foi o único que conseguiu enganá-lo. Isso porque, na indecisão de remeter uma resposta ao imperador francês, D. João protelou ao máximo fazendo, por vezes, jogo duplo. Isso levantou a suspeita dos ingleses de que Portugal aderira ao ultimato francês. Numa decisão aos “45 minutos do segundo tempo”, D. João resolveu fugir para o Brasil. Os planos de viagem já estavam devidamente traçados, mas sempre como um plano B.
Se o itinerário era mais ou menos previsível, o mesmo não se pode falar da preparação de última hora para a viagem. A monarquia “juntou os trapos” em tempo recorde, raspando os cofres e levando uma comitiva de aproximadamente 15 mil pessoas. Lisboa à época contava com cerca de 200 mil pessoas. O ajuntamento dos livros da Biblioteca Real foi um caso à parte: na pressa, esqueceram-nos encaixotados nas docas, e só três anos depois seriam remetidos para o Rio de Janeiro.

A data de partida foi 29 de novembro de 1807, sendo as embarcações lusitanas protegidas pela Marinha britânica, que deu respaldo durante a travessia. Descendo pelo Atlântico, a tripulação passou maus bocados, notadamente quando ultrapassaram a linha do Equador e ficaram cerca de dez dias sem ventos favoráveis, o que tornou a travessia lenta. O clima frio europeu à época dera lugar ao sol equatorial que “queimou cabeças” nos desconfortáveis navios da época. Doenças proliferavam-se devido à falta de asseio, a água potável apodreceu e a comida rareou.
Esse inferno astral perdurou até à chegada de uma delegação a Salvador, na Bahia, encabeçada por D. João VI (parte da frota continuou a viagem em direção ao Rio), no dia 22 de janeiro de 1808. Mudando os seus planos, D. João VI resolveu passar uma temporada na Bahia, talvez para aproveitar o carnaval ao som do Olodum (desculpe-me a brincadeira). A chegada ao Rio de Janeiro deu-se a 8 de março, sendo que foi o primeiro monarca a chegar a uma colónia. Neste caso mais específico, viria para residir, um marco que mudaria o grau de importância do antigo Rio de Janeiro.
Se o prezado leitor não conhece a origem da expressão “Cidade Maravilhosa” dada ao Rio de Janeiro e, se pior, não conhece o Rio, não perca tempo: visite-o e descubra-o. Chegando pelo Atlântico Norte, os portugueses vislumbraram um cenário paradisíaco: paredões gigantescos, a pedra da Gávea e as vegetações exóticas, aliadas ao clima tropical e tiveram assim a descrição própria deste novo mundo (expressão emprestada que remete três séculos atrás, com a chegada de Cristóvão Colombo).
O desembarque foi cercado de pompa e circunstância. Da população com cerca de 60 mil habitantes, muitos eram comerciantes europeus, traficantes de escravos e uma assombrosa população escrava. Já havia por aqui uma sociedade organizada. Deste modo, 15 mil da população lusitana se somariam à população local e dá para antever o enorme problema de infraestrutura que ocorreu. Relatos de viajantes, historiadores e outros denunciam essa falta de acomodação. Em muitas passagens do livro, o autor apresenta essas impressões que soam, atualmente, engraçadas. Num outro futuro artigo, prometo descrever o que era o Rio de Janeiro à época, na descrição de Laurentino Gomes.
A monarquia portuguesa estava dividida na chegada ao Rio. Exemplo interessante foi a impressão da princesa Carlota Joaquina, que veio a contragosto e, que se fosse ouvida, encararia Napoleão e o seu exército. Sem meias palavras, disparou, ao retornar em 1821, batendo as sandálias contra um dos canhões da amurada do navio, cito: “Tirei o último grão de poeira do Brasil dos pés (…) Afinal, vou para terra de gente!“. Esses dizeres estão também no filme de Carla Camurati, “Carlota Joaquina, Princesa do Brasil“. No filme, Carlota é interpretada por Marieta Severo. D. João é representado por Marco Nanini.

Imediatamente, a colónia ganha status de metrópole e Portugal fica relegado a segundo plano. A abertura dos portos aos navios estrangeiros, com o controle inglês, em 1810, é um passo importante que muitos historiadores não tão tradicionalistas enxergam como a verdadeira “Independência do Brasil”. A criação de um banco, o Banco do Brasil, para depositar o tesouro imperial retirado da ex-metrópole, foi outro passo. Esse banco durou até ao retorno de D. João VI a Lisboa. Mais uma vez, raspou os cofres. O renascimento do Banco do Brasil aconteceria algum tempo depois, o embrião do banco federal que temos hoje, o BB.
De uma hora para outra, os bons ventos sopraram no Rio, mas passado o primeiro momento de deslumbramento, a população viu-se aviltada pelas extravagâncias da monarquia. Só para se ter uma ideia, as melhores acomodações da cidade ficaram para a comitiva do futuro imperador. Um decreto carimbava as melhores residências com as iniciais P. R., que significavam “Príncipe Regente”, como requisição dessas propriedades para a coroa. E o que é mais surreal: era sinal de status para os desapropriados, que ganhavam uma pensão simbólica, e caíam nas boas graças do monarca, que lhe concederia títulos.
Dando já uma amostra do bom humor carioca, alguns interpretavam essas iniciais como “Ponha-se na Rua”. Desse aviltamento, aos poucos a população viu crescer o contraste social que discriminaria a população de baixa renda, certamente um germe do que assistiríamos depois com a entronização das favelas, facto observado até aos dias atuais.
Uma das grandes dificuldades da monarquia lusitana foi desbravar a colónia de então. Não custa lembrar que o Brasil não estava ainda com as suas fronteiras delimitadas, sendo um gigante continental à mercê dos ataques dos aventureiros.
Contudo, D. João VI conseguiu êxito sufocando focos de rebelião que aconteceram nas províncias, sendo uma das mais importantes o confronto com os rebeldes de Pernambuco, ocorrido em maio de 1817 (esse levante perdurou por apenas três meses, mas foi um obstáculo então para os sonhos do Império projetado por D. João. Interessante é observarmos que a atual bandeira do estado de Pernambuco foi idealizada por esses insurgentes. A bandeira traz as cores azul escura, branca, amarela e vermelha. Na parte superior foi desenhado um arco-íris com uma estrela e um sol).
Contornando e debelando focos de resistência, D. João VI, então já coroado Rei (apenas um protocolo, pois já era tido como tal desde a impossibilidade de comando da sua mãe louca), e que elevou o Brasil ao status de Reino Unido a Portugal e Algarves, teve dois tranquilos anos até à Revolução na cidade do Porto, em 1820. Lá, os revoltosos exigiam o retorno da família real. O que se viu a seguir foi mais uma decisão custosa a D. João.
Tentando manter as bases do seu império, desejava que o seu filho D. Pedro I partisse e que ele, o pai, ficasse no Rio. Só que D. Pedro já estava bem ambientado por aqui, ainda mais que a sua esposa Leopoldina estava grávida e, uma travessia pelo Atlântico, como eles mesmos já haviam sentido na pele, não era lá muito segura. Dessa forma, o monarca resolveu retornar à Terrinha deixando o filho. Quando a monarquia exigiu o retorno imediato de D. Pedro I em 1822, aí a história já é bem conhecida. O “Dia do Fico” e a Independência do Brasil.
Infelizmente, “uma nação que não preserva a sua história tende a repetir os seus erros“, enunciado pelo grande filósofo grego Aristóteles, é aplicado ao país de hoje. O Brasil, país continental e riquíssimo, está entregue desde sempre às mãos de políticos inescrupulosos, sem ética e que fazem do conchavo uma linha de conduta para salvaguardarem os seus próprios interesses. A “Terra de Cabral# repete sempre o trecho de música de Cazuza e Arnaldo Brandão: “Eu vejo o futuro repetir o passado / eu vejo um museu de grandes novidades“…
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