OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

Se não se recordam do conto da semana passada, podem encontrá-lo aqui!

No dia seguinte lá estava Gregório enfrentando uma sala de aula novamente. A sorte era que não era a sala de Carla, mas o ambiente todo na escola estava nublado. Gregório pressentia os olhares enviesados, os julgamentos e a hipocrisia que acontece sempre nesses momentos: palavras evasivas e especulativas sobre os últimos acontecimentos e, lá pelas tantas, a ferroada acerca do facto em si. Uma aluna questionou ao professor a sanidade mental de Carla, ao que Greg saiu com evasiva, pedindo para que a turma se ativesse ao feitio da Redação.

— Desculpe-me professor! Mas não dá para não comentar.

— É isso mesmo. Também somos jovens e por isso estamos preocupados com o ocorrido – apontou outra menina.

— Não dá para simplesmente ignorar, fazer uma Redação como se nada tivesse acontecido. Uma menina morreu – lembrou um rapaz.

Gregório esclareceu sobre o que significava curiosidade mórbida, respeito pela vida privada de cada indivíduo e que conversaria de bom grado sobre a estupidez da vida na hora do intervalo, com quem quisesse. Controlou a sua raiva e refletiu que ainda estava muito abalado. Sentou-se para corrigir outras Redações e o pensamento voou para Carla. Fantasma omnipresente. As letras embaçavam a sua vista, lágrimas caíram e nem procurou despistar, frente aos olhares de soslaio da turma. Precisava passar por esse calvário, “por que não evitei que isso acontecesse? Quando ela me falou de suicídio, entendi como algo vago, distante. E depois ela me disse que tinha decidido não mais se matar. E de uma hora para outra a coisa degringolou. No sábado passado, o que iríamos conversar? Será que ela chegou a assistir “Beleza Americana“? Que saudade! Que saudade! E eu estava interessado na sua análise de “A Gaia Ciência“. Onde foi que eu falhei? Deveria ter comunicado à direção da escola o teor da conversa? Deveria ter tentado falar à sua mãe? Por quê? Por que isso tudo?”. Estava nesse grau de digressão quando foi chamado na porta por Vicente, perguntando se ele poderia acompanhá-lo. Pediu licença à turma, orientando que terminassem suas Redações e seguiu o funcionário. Na sala dos professores, Brigitte (ou seria Jurema) o esperava e tão logo o viu, abriu os braços, dirigiu-se a ele e emocionada, abraçou-o, chorando. Desconcertado, Gregório a acalmou, sugeriu que se sentasse e percebeu que ela tinha um embrulho nas mãos.

— Carla pediu para que lhe entregasse isso.

Frame do filme “Beleza Americana” (1999)

Gregório praticamente tomou o embrulho das mãos da mãe. Desembrulhou-o e viu o exemplar de “Assim Falava Zaratustra“. Era um exemplar antigo, certamente adquirido em um sebo, edição de 1961 publicado pelas Edições e Publicações Brasil. Um livro tão antigo que escrevia o primeiro nome do alemão como Frederico. A capa estava toda surrada e solta, as folhas amareladas pelo tempo davam ao livro um charme todo especial. Folheando rapidamente, percebeu que havia várias anotações e pensamentos, e a inconfundível letra de Carla. Greg sorriu, chorou e apertou a mão da mãe.

— Carla gostava muito de você.

— E eu dela. Uma adolescente brilhante!

— Posso te perguntar uma coisa?

— Pode.

— Alguma vez minha filha te falou sobre suicídio?

Greg mentiu, dizendo que não.

— Como ela gostava muito de você, fiquei pensando: esses livros que vocês leem são muito complicados. Podem mexer com a cabeça das pessoas, principalmente os mais jovens?

— Acredito que não. Sua filha era muito sensível, doce, meiga, uma aluna brilhante. Uma cabeça muito à frente do seu tempo.

— Ela falava de mim para você?

— Não muito. Carla estava encerrada no seu próprio mundo.

— Ela chegou a te convidar para o jantar?

— Sim. Marcamos de nos encontrar no sábado, à tarde. Cinema próximo a Praça da Liberdade.

— Sim, a hora fatídica – lembrou Jurema.

— E a senhora, como está?

— Arrasada! Como pode ver! – levantou-se e abraçou Greg mais uma vez, segurando o choro – Desculpe-me o atrevimento, mas sinto a presença de minha filha em você. O que ela escreveu antes de morrer foi muito diferente, direcionar uma encomenda a você. Ela te admirava muito.

— E eu a ela – desvencilhou-se do abraço.

— Posso te pedir uma coisa?

— Claro.

— Venha jantar comigo.

— Isso é uma boa ideia?

— Gostaria que você visse o quarto de minha filha.

— Está bom!

— Podemos já deixar agendado?

— Sim.

— Quer que mande te buscar?

— Não. Chego lá.

Confirmaram endereço, data, horário e Jurema saiu. Gregório apertou o livro, folheou-o a esmo e dirigiu-se à sala antes que soasse a companhia do fim do horário. Pegou suas coisas, as Redações e despediu-se, desculpando-se por uma possível grosseria. Foi à segunda aula.

Saindo da escola, recebeu um telefonema de seu editor no jornalzinho de bairro. Ele estava apreensivo e cheio de dedos. Depois de dar muitas voltas, foi direto ao ponto:

— Senhor Gregório, sabe que aprecio muitas de suas ideias, mesmo que não concorde com a maioria delas.

— Agradeço. Mas qual o motivo da ligação?

— É, veja bem, não sou adepto da censura, mas tenho algo delicado para te falar. Delicado e… bem, o motivo da minha ligação é que não gostaria de publicar o seu artigo sobre o suicídio.

— Porquê?

— Porquê?! Olha, eu tenho cabeça boa. Você sabe que eu tenho. Mas a coisa anda tão estranha aqui no bairro que, só nessa semana, três adolescentes se mataram. Parece epidemia.

— Bem, se me lembro bem, meu artigo foi genérico.

— Genérico? Então você não escreveu sobre a Bruna, a Sofia?

— Não.

— E que coisa é essa de você escrever que, durante uma palestra, chamou a nós, adultos, de imbecis?

Gregório não estava ali com as ideias em ordem. Lembrara sim que fora contratado por uma escola e, do mesmo jeito que fora ovacionado pelos alunos, foi defenestrado pelos professores e direção. Tentou despedir-se:

— Tá bom! Não publique. E me desculpe o transtorno.

— Espero que me entenda. Mando rodar 500 jornais. Distribuo nos arredores aqui mesmo. Inicio agora a venda de assinaturas. Bairro de classe alta. E vem um artigo barra pesada de suicídio? Por que você não escreve como Drummond, sobre as montanhas de Minas? Ou como Fernando Sabino, com o seu estilo de crónicas leves? Gregório, você é um bom sujeito, o que te mata é que você pensa demais. As pessoas querem coisas leves; veja se o Augusto Ribeiro vai escrever sobre a falta de sentido para as pessoas viverem?… Uma leitura mais cuidadosa pode incriminá-lo até, irão dizer que você é um guru de uma dessas seitas que pregam o suicídio indiscriminado. Entenda, Gregório, quero continuar com a sua coluna, filosofia é uma coisa que agrega muito, mas pega leve!… Pelo amor de Deus, pega leve!

Carlos Drummond de Andrade

Se o leitor estranhar o silêncio de Gregório, explico: passara a ter o mesmo grau de atenção quando atendemos a um serviço de telemarketing quando nos é oferecido um serviço não solicitado. Despediu-se e, para evitar mais aborrecimentos, disse que enviaria mais tarde outro artigo.

Chegou ao seu prédio e viu Chris e Márcia que conversavam animadamente. Márcia foi em sua direção e, estendendo os braços, o abraçou. Chris repetiu o mesmo gesto.

— Desculpe-nos vir aqui te incomodar – iniciou a feminista. Mas estávamos passando por aqui e resolvemos tentar a sorte.

— Nada a desculpar.

— Vim para confirmar: vai fazer a palestra?

— Agradeço, mas não.

— Não?! – levou as duas mãos ao rosto Chris, incrédulo.

— Não?! – Márcia fez cara feia.

— Não. Não me sinto preparado. Gostaria muito, mas não tenho assunto, desculpem-me a franqueza, não tenho interesse e ademais, penso que não iria acrescentar muito.

— Posso te perguntar uma coisa? – Chris tornou.

— Fique à vontade.

— Você é homofóbico?

— Não! – impacientou-se Gregório. Apenas não quero dar palestra.

Márcia estava irada. Rosnou:

— Você é homofóbico, sim. Enrustido, mas homofóbico. Pensa que não sei que não deseja se expor? Quando o movimento tenta oficinas com debates sérios, você simplesmente diz não?

— Veja bem! Não digo que sou contra, não tenho opinião formada, não ligo, mas não discrimino nem nada.

— Você é um maldito homofóbico – sibilou as palavras Márcia.

— Não sou.

— E nós que descartamos uns três filósofos que queriam participar. Descartamos eles para a sua palestra, e você nos dá as costas, logo agora? – chateou-se Chris.

— Desculpem-me os dois pelo inconveniente. Tenho passado dias difíceis.

— “Tenho passado dias difíceis?!”, ora essa! – imitou Márcia. – E a discriminação que sofremos, já não é o bastante?

E o diálogo seguiu, com faniquitos de Chris e Márcia e, num dos pontos mais acalorados e definitivos, Gregório chutou o balde e surtou, quase gritando, para constrangimento de todos no local:

— Seus dois merdas! Respeito os gays, as lésbicas e nunca jogaria álcool em nenhum de vocês. Mas querem oficina sobre o quê? Como Chris chupar um pau imenso que o faça engasgar? Como Márcia parar de encher o saco com o seu discurso heterofóbico de quinta? Vão para a puta que os pariu, saiam do meu prédio e do alcance da minha vista. Fodam-se! Entenderam?! Fodam-se! Quero que morram!

Um estupor tomou conta de todos ao redor. Uns saindo de fininho, o segurança do prédio veio ao lado de Gregório, perguntando se ele estava bem. Márcia chorou e Chris a consolou, levando-a consigo. O segurança encaminhou Greg ao elevador, afirmando:

— Cara, você está de parabéns! O que foi aquilo? Espinafrou a bicha e a mulher macho de uma só vez.

— Wellington, não fale assim. Despachei dois chatos, nada mais que isso.

— Cara, você é demais! Tô com uma piranha pegando no meu pé. Sua atitude deve servir-me de inspiração. Cara, você ligou o Foda-se! Fiquei seu fã.

— Obrigado, Wellington! – mas não fale bicha de forma pejorativa. Tenho amigos homossexuais e eles são legais, respeitosos.

— Tá certo, rapaz! Mas que fiquei seu fã, isso fiquei.

— Obrigado! – apertou o botão 4 e o elevador fechou. Entrou em seu apartamento, passando pelo tumulto do corredor, a ponto de observar um cliente reclamando do relojoeiro seu vizinho por conta de uma corrente de prata. Fechou a porta atrás de si e sentiu um misto de raiva, alívio, solidão e frustração. Esquentou um resto de comida na geladeira, almoçou e cochilou um pouco, levando o livro de Carla para a cama. Ao acordar, abriu a esmo o volume e leu: “Quando Zaratustra chegou à terra firme não foi logo direto à sua montanha e à sua caverna, mas deu muitas voltas e fez muitas perguntas para se informar duma porção de coisas; e dizia de si para consigo, gracejando: ‘Eis aqui um rio que, por mil voltas, retrocede à sua nascente!’ Que ele queria saber o que fora feito do homem durante a sua ausência: se se tornara maior ou mais pequeno. E um dia divisou uma fileira de casas novas; admirado, disse: ‘Que significam aquelas casas? Em verdade, nenhuma alma grande as edificou como símbolo de si mesma. Tirá-las-ia da sua caixa de brinquedos algum rapazinho idiota? Pois torne-se a meter na caixa outro rapazinho! E aqueles aposentos e desvãos! Poderão ali entrar e sair homens? Parecem-me feitos para bichos de seda, ou para gatos gulosos, que talvez se deixem também comer’. E Zaratustra ficou-se a refletir. Por fim disse com tristeza: ‘Tudo se tornou pequeno!’. Por toda a parte vejo portas mais baixas; aquele que é da minha espécie ainda poderá talvez passar por eles, mas tem que se agachar! Ó! Quando tornarei para a minha pátria onde já não terei que me curvar… ante os pequenos? E Zaratustra suspirou e olhou ao longe. Nesse mesmo dia pronunciou o seu discurso sobre a virtude amesquinhadora”.

Gregório sorriu. Releu. Refletiu. Sentiu a presença de Carla ali. A conversar com ele. Saiu a esmo por uma BH caótica, recebendo os cumprimentos dos funcionários do prédio, um deles comentando:

— O Wellington tinha que fazer isso também. Recebe uma piranha que o chantageia dia e noite… Ah! se eu fosse ele, fazia como o Gregório e fazia a piranha se mandar…

Entre transeuntes e carros afobados, chegou ao BH Shopping intentando tomar um café e comprar roupas ordinárias de mesa e banho, dar uma passada na Leitura e ali matar o tempo. Sentou-se no mezanino e escreveu o artigo que enviaria para o exigente editor de bairro. Escreveu em sua agenda, mais tarde digitaria.

A mentira da Autoajuda

Gregório Mendes (GM)

Gosto muito de assistir a cafés filosóficos, notadamente os da TV Cultura. Presencialmente, fiz questão de viajar para ouvir palestras de grandes pensadores brasileiros. O que estes pensadores têm em comum? Ao invés de afagarem o ego de um público carente, como estes “animadores de auditório que fazem palestras de autoajuda”, eles problematizam. Assim como verdadeiros filósofos. Aprendi e aprendo muito com estes grandes pensadores.

O contrário se dá com esse comércio de autoajuda que é intragável. Pseudofilósofos que ganham a plateia com a forma do discurso, mas o vazio do conteúdo. Os “António Paulo da vida”. Fala bonito que é uma beleza, mas fico imaginando o vazio do discurso em frases feitas e que assomam a ideia de que, quando desejamos algo muito forte, isso logo se concretiza. Muletas que servem de trampolim para esses oradores, os famigerados livros de autoajuda. E aí fico assombrado com os títulos das obras feitas para um público generalizado: O Segredo, Cartas entre amigos, de Padre Fábio Rossi (argh!) e Gabriel Carrara (dois arghs!). E tem um tal de semeador de sonhos, semeador de vitórias etc. Uma literatura barata e chinfrim, de terceira categoria, tipo Augusto Ribeiro.

O pensador Leandro Amaral (super inteligente!), em um de seus cafés filosóficos pela CPFL, ironizou e debochou dos autores da autoajuda. Não é textual, mas ele disse mais ou menos o seguinte: “Estes escritores de autoajuda só ajudam a si mesmos. Pois ganham muito dinheiro com seus livros, que logo caem no gosto dos carentes e ávidos por uma pílula de felicidade”. Precisa dizer mais alguma coisa? Vou mais além e afirmo: eu, que já estudei retórica e oratória, fico surpreso com tamanha cara de pau de alguns conferencistas embromadores. Lembro-me aqui de um trecho de música dos Engenheiros do Hawaii, numa letra de Humberto Gessinger: “É muito engraçado / que estejam do mesmo lado / os que querem iluminar / e os que querem iludir”.

Claro que tudo se insere numa questão de gosto e de estética. Faço parte de uma geração de leitores que bebeu muito na fonte da literatura existencialista francesa, notadamente dos textos de Camus e Sartre. Carregado de tintas filosóficas, estes escritos geralmente carregam na angústia, mas, sinceramente, sinto alívio por entender que a vida deve ser vivida em toda sua intensidade, incluindo aí o sofrimento. “Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe”, este é o meu lema de vida. Indo além, o existencialismo francês nos prega sermos os autores de nossas próprias vidas, nunca indivíduos que necessitam assistir a palestras de autoajudas para enxergarem o óbvio. Óbvio que pode ser observado na sentença seguinte: “Quando desejamos muito alguma coisa, todo o Universo conspira a favor”. Não são meninas de quarta série de grupo que pensam dessa forma, são adultos de 40, 50 anos. Estupidez tamanha!

Quando GM é chamado para proferir alguma palestra, pergunto acerca do público-alvo. Se observar algum sinal de público “rebanho de gado”, prefiro nem ir. Faço eu mesmo a minha propaganda em contrário: “Não me contratem, por gentileza. Vou é preocupá-los, não confortá-los”, este é o meu lema. Numa conferência em forma de mesa redonda, desmascarei um charlatão provando que os argumentos filosóficos dele eram vazios, ocos. Aquilo não foi um debate, foi uma sova. Uma sova pública pelas ondas do rádio. É aquilo que sempre afirmo: se quiserem debater comigo, podem vir. Se eu sentir que não sei, não tenho nenhum problema em dizer: “Não sei!”. Mas se falarem mentiras, aí, sim, desmascaro o interlocutor, apresentando factos e não reparando no esperneio desesperado e choroso.

Nessa minha vida de palestrante, sigo e seguirei por aí provocando, problematizando, somando, argumentando, enfim, dialogando numa ágora grega. Talvez um dos meus charmes seja o de desmascarar charlatões, gente vazia que vive vendendo pílulas de autoajuda para um público dócil. Para pensarmos! E antes que me acusem de ciúmes, afirmo em contrário, que não é nada disso. Como afirmei no primeiro parágrafo, faço questão de ouvir pensadores que me fazem… pensar! Com os idiotas, não perco meu tempo sagrado!

Marcelo Pereira Rodrigues

One thought on “Conto: “Diversidades”

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