“Fui colocado a meio caminho entre a miséria e o sol.”
– Albert Camus, escritor franco-argelino (1913-1960)
Diferente de Camus, irei abordar nesta crónica o Astro-Rei e a temporalidade e tudo que se manifestou em mim de forma simples. Numa das comunicações com o editor de OBarrete, Diogo Passos, ele havia afirmado que aproveitara a manhã para caminhar aproveitando o sol na cidade do Porto. Por esses dias de quarentena, também tenho aproveitado o sol. Sempre pelas 14:00 horas, após o almoço, dirijo-me ao meu quarto e fico admirando as árvores altas de uma casa vizinha.
Nesse período, o sol bate forte e atinge os pés de minha cama, de forma que fico ali, a ler, sentindo o vento que agita as frondosas árvores e aproveitando o sol nas canelas. Nesses dias introspectivos, acredito que tudo se resuma nisso: a riqueza que é saber aproveitar o sol. Pensando (e muito mais que pensar, sentir) na temporalidade, imagino como será daqui a 50 anos, quando então terei 95. Aproveitarei e terei gozo com essa atitude simples de me expor ao sol?
Minhas reminiscências viajam para o tempo de criança. Aí sim, sinto que caberia o pensamento de Camus. Infância pobre numa cidade do interior. Fora a escola, as brincadeiras com as outras crianças e a ajuda nos afazeres domésticos, sobrava-me bastante tempo para ler e estudar. A pobreza era tamanha, que uma mesa ou simples cadeira era luxo. Quando não estava de pé, sentava-me no colchão e por vezes deitava. Para alternar um pouco essa posição, ia para a varanda do casarão antigo e ali acolhia os raios de sol que atenuavam as tardes de inverno.
Equilibrava-me numa superfície de 30 centímetros e levava o travesseiro para ler. Por vezes, cochilava. Ainda hoje não consigo entender como não despenquei, de uma altura de 3 metros, na rua. Cochilava e me esquentava. Despertava e, na hora do café da tarde, minha mãe e eu conversávamos na janela, e ela observando um morro defronte, me ensinava que àquela hora, no sol da tarde que estava se pondo, as almas saíam para tomar sol. Como criança, deveria acreditar na minha mãe, mas confesso que tinha dificuldade para crer, a ver uma característica de ser uma espécie de Tomé, aquele discípulo que sempre queria ver para crer. Ah, que saudades!
No hoje, sensorialmente, analiso a importância do sol. Nesta nossa Terceira Guerra Mundial, com o inimigo invisível chamado COVID-19, a verdade é que não sabemos ao certo os alvos que o inimigo irá atacar. Não me encontro no grupo de risco. Estou com uma idade média e não tenho nenhuma comorbidade. Luto com as armas que tenho, tentando manter ao máximo o isolamento social. Mas, não podemos nos ater ao nosso próprio umbigo. Vejo com preocupação milhares de pessoas tombando nesta guerra estranha. Fora os casos notificados, sabemos dos casos sub-notificados. Aí é que a coisa complica.

Num desses dias, com as canelas ao sol, ouvia o CD “O Descobrimento do Brasil”, Legião Urbana. Com letra intimista de Renato Russo, a canção Só por Hoje me bateu no peito. Claro que já ouvi a canção inúmeras vezes, mas nesse dia a coisa foi mais significativa. Sabendo dos bastidores da composição depois, quando Renato já estava acometido pelo HIV, o seu canto revela suas dores e seus versos são existencialistas por demais:
“Só por hoje eu não quero mais chorar
Só por hoje eu espero conseguir
Aceitar o que passou e o que virá
Só por hoje vou me lembrar que sou feliz
Hoje eu já sei que sou tudo o que preciso ser
Não preciso me desculpar e nem te convencer
O mundo é radical
Não sei onde estou indo
Só sei que não estou perdido
Aprendi a viver um dia de cada vez
Só por hoje eu não vou me machucar
Só por hoje eu não quero me esquecer
Que há algumas pouco vinte quatro horas
Quase joguei a minha vida inteira fora
Não não não não
Viver é uma dádiva fatal
No fim das contas ninguém sai vivo daqui mas
Vamos com calma
Só por hoje eu não quero mais chorar
Só por hoje eu não vou me destruir
Posso até ficar triste se eu quiser
É só por hoje, ao menos isso eu aprendi
Yeah“
O futuro. Daqui a 50 anos. Certamente irei me remeter a estes dias do presente. Somado às reminiscências do menino que ficava dependurado na varanda, na certeza de minha fortuna ao estar nesta confortável cama, e escolho este cómodo tão somente pelas circunstâncias, declinando ao conforto de minha poltrona na biblioteca, afinal, tenho que me submeter ao sol. Ao fim de tudo, como última reflexão de vida, espero proclamar, no último suspiro, a simples frase: “Fui um homem feliz. Expus-me ao sol“!
Pintura de Vincent Van Gogh, “Pôr do Sol em Montmajour” (1888)