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Porque A Arte Somos Nós

Num primeiro momento, se pensarmos em literatura russa do século XIX comumente atribuiremos a ela a sisudez e profundidade nos escritos de Fiódor Dostoievski (1821-1881), e conto mesmo se atenuarmos com o excelente humor e fina ironia de um Nikolai Gogol (1809-1852), notadamente em “Almas Mortas” (já abordado aqui), o certo é que a profundidade dará o tom. Assim sendo, ao iniciar a leitura de “Contos”, de Anton Tchekhov (1860-1904), publicado pela Editora Nova Fronteira (2021, 253 páginas), inserido na coleção Clássicos de Ouro, pois bem, muitos dos seus textos são joias raras.

Composto por 37 contos, mergulhamos na atmosfera russa e observamos o talento do escritor para compor personagens tão controversos, todos mostrados com a lupa do observador perspicaz e engraçado. Em muitos desses contos, o adultério é citado, quase uma sina para casamentos que tinham tudo para dar errado; a emotividade um pouco exacerbada russa é abordada e até a imprecação contra si mesma, de modo que não à toa lemos a expressão “Ah, como eu sou desgraçada” uma porção de vezes.

Como crónicas para jornais, os textos envolvem-nos e nos emocionam com os seus devidos acabamentos. O humor e as viradas do destino acompanham até as fatalidades da morte que nos ronda a todos. Se em “A senhora com o cachorrinho” nos é apresentado um caso de adultério básico, a sorte e o azar brincam com a imaginação dos protagonistas em “O bilhete da loteria“. Se em “A corista” a protagonista é insultada por desencaminhar maridos, sendo que acaba dispondo das suas joias, em “Sobrenome cavalar” um rosário de nomes é aventado enquanto a memória brinca com o esquecimento, acerca de um importante doutor.

O médico, dramaturgo e escritor russo Anton Pavlovitch Tchekhov

A mulher do farmacêutico” é outra pérola (afinal, como aquele pitéu pôde casar com um homem tão sem graça?) e “O médico” apresenta-nos as dores e sofrimentos de um profissional que, mesmo tendo que lidar com o luto do filho naquele dia, é praticamente raptado para curar a mulher de um fazendeiro. “A duquesa” é uma ode à hipocrisia, sendo ela vil e interesseira, retirando-se num convento e fazendo caridades, mas apenas de fachada. Quando um interlocutor atira isso à sua cara, ficamos a saber dos seus podres. “A esposa” é outra ironia sobre o casamento e “Ana no pescoço” encerra bem o livro, dando ao conjunto de contos ares de excelência.

Com seleção e tradução de Tatiana Belinky e prefácio de Irineu Franco Perpetuo, a capa chamativa apresenta-nos uma paisagem clássica russa, com castelos, neve, charrete e roupas de frio que praticamente tapam tudo. Mudanças de destino, coincidências, alegrias e tristezas, ressentimentos, culpas, amores exacerbados e outras ocorrências fazem parte deste compêndio, e de tudo o que deu para depreender é o reconhecimento da excelência do autor, ele que também foi médico e certamente por isso descreve tão bem algumas cenas técnicas.

Um destes livros impossíveis de pescar algumas citações, sob pena de atribuirmos ao léu alguns trechos, são a totalidade dos contos que nos fazem sentir o prazer indelével de uma excelente conversa. Destes autores que nos obrigam a ler outros dos seus trabalhos. Fica o convite para que tomem tento deste tal de Tchekhov: ele é muito bom!

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 3.5 out of 4.

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