Hoje em dia, a meu ver, o cinema pode estar a entrar numa espiral perigosa. Se por um lado temos praticamente toda a “informação” ao nosso alcance, a verdade é que estamos a aceitar uma possível saturação e desaproveitamento da experiência como um todo. Eu explico: se podemos “ver o que quisermos onde quisermos”, também significa, numa perspectiva, que a fruição dessa actividade perde, ou pode perder, algum significado intrínseco. Se, invariavelmente, praticamente todos somos defensores da maximização da sétima arte no grande ecrã, as Netflix’s da vida vieram, para algumas pessoas, promover um certo desligamento entre a obra e o contemplador. Não estou com isto a dizer que esta plataforma em particular é má para o cinema; sou até defensor de precisamente o oposto, mas, como em muitas outras coisas da História, e infelizmente, o problema fundamental da maioria das coisas (enquanto evolução) não está no impacto, pertinência e aplicabilidade que transpõem, mas sim na forma, por vezes errónea, com que nós a (des)aproveitamos.
O facto de eu poder hoje, na sequência de um desejo profundo de ver este ou aquele filme, sem grandes impedimentos – e sem custos –, usufruir do visionamento de grande parte da produção cinematográfica é, obviamente, algo que me deixa satisfeito enquanto consumidor e, acima de tudo, apreciador de cinema. Contudo, outro grande problema da nossa actualidade, neste sentido, é a questão de, a meu ver, precisamente por essa mudança na forma como o público vê cinema, cada vez mais acessível, haver por parte das produções o cuidado de adaptar a essência dos filmes ou séries a uma vertente mais mainstream, fácil de apreender: o chamado cinema “fast food“. O que acontece com isto é que entramos numa espiral de desprendimento entre: 1.º a intenção de contar uma história; 2.º a finalidade, a mensagem, a moral; 3.º o cinéfilo, o espectador; quanto este “cresce” depois da experiência. Com isto não quero dizer que esta é a característica fundamental do cinema dos dias de hoje, apenas deixo em questão este possível cenário, se não for encarado com lucidez pelas grandes instâncias que o “regulam”.
Naturalmente que se faz muito bom cinema para as “massas” e que a indústria do cinema precisa e tem nesse género de filmes uma fonte importante da sua fatia para, precisamente, poder produzir filmes de maior ordem intelectual. Noutro prisma, o que vejo hoje nos espectadores é um desinteresse maior para com o típico “sair da zona de conforto”: é muito difícil encontrar espectadores versáteis, que consigam ver, literalmente, para lá dos seus estigmas e enriquecer, desafiando-se a si mesmos, o seu reportório crítico. A questão da crítica e da reflexão tem também um aspecto interessante, nomeadamente, o facto de muitas pessoas, talvez a maioria, associar o cinema – ir ver um filme – como, acima de tudo, um momento para relaxar, para consumir, para naquele momento “desligar o cérebro” e deixar o filme falar por si. Isto é um antagonismo puro, porque quando vamos, por exemplo, a um museu, temos – sobretudo nesse contexto – de estar intelectualmente alertas, pois está sobretudo em nós e na nossa subjectividade a riqueza e o objectivo da arte.
Acho que, fundamentalmente, somos nós espectadores que temos que mudar este panorama, mas, acima de tudo, temos de ser capazes de reconhecer que há muitas coisas irracionais quando não elevamos o cinema ao patamar artístico que bem merece; quando não categorizamos a experiência como única no seu momento, tendo nós tudo quase à distância de um clique, não vamos ser capazes de apreciar, maximizando o resultado humano e intelectual, a experiência de ver, e bem, Cinema.
Apreciemo-lo na sua plenitude, sempre com a intelectualidade necessária para o decifrar, compreender e retirar dele a mais bonita magia.
Bons filmes.
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