Costumo afirmar que o ator Tom Hanks é tão bom, mas tão bom, que se passar duas horas lendo a “Bíblia” já considerarei a sua atuação excelente! Pois bem, ele atua no filme “A Beautiful Day In The Neighborhood”, em português “Um Lindo Dia na Vizinhança“, com realização de Marielle Heller, com os atores Matthew Rhys, Susan Kelechi Watson e Chris Cooper. Hanks interpreta Fred Rogers, um animador e apresentador de um programa infantil, o Mister Rogers’ Neighborhood, que é o carisma em pessoa. Bondoso, atencioso, pouco afeito à fama, tem por hobbie nadar, ler a “Bíblia” e nomear as pessoas às quais dirige as orações. O programa é um sucesso absoluto nos Estados Unidos na década de 1960.
Em 1998, o repórter Lloyd Vogel (Matthew Rhys) da revista Esquire, aceita a incumbência de escrever um perfil de não mais que 400 palavras e viaja a Pittsburgh para a sua missão. As suas reportagens não são nada lisonjeiras. Não são poucas às vezes em que os retratados se indignam contra ele. Como se dará esse encontro entre pessoas tão díspares? Reza a lenda que devemos desconfiar de tanta bondade em uma pessoa só, mas o certo é que o Sr. Rogers assim é. Vence as primeiras reservas do entrevistador e percebe logo de caras que o interlocutor está com sérios problemas.

O foco recai sobre o protagonista. Pai recente, vai ao casamento da irmã e encontra-se com o desafeto pai, com o qual houvera rompido. Ressentimentos afloram no encontro no buffet e partem inclusive para a agressão física. O impaciente repórter mergulha fundo no trabalho e, aos poucos, vai rememorando os seus tempos de criança, ainda para mais ao ser estimulado pelo entrevistado a abrir-se um pouco e assim cuidar das suas feridas na alma, já que os hematomas na face estão bem nítidos. O enredo é muito bem construído, quase à beira da pieguice em muitas passagens, mas tudo é desculpável, pois Tom Hanks empresta essa autenticidade nas ações de seu personagem.
A narrativa é muito bem cuidada, apesar de simples, e o filme utiliza dos mesmos efeitos especiais da época do programa para nos contar a história. Do desenho animado, mais as personagens lúdicas do programa do Sr. Rogers, tudo é minimalista e detalha bem as atividades e situações corriqueiras. Quando começa a narrar a sua entrevista, explica o funcionamento de como funciona uma revista, desde a reunião de pauta (os escritores dos artigos, os diagramadores e os responsáveis pela seleção de fotografias) aos trabalhadores do parque gráfico que injetam as tintas no maquinário.
Daí a máquina que picota, encaderna e os trabalhadores que embalam os exemplares, a seguir o transporte nos caminhões até à chegada nas bancas, no caso dele, agradece ao carteiro que lhe trouxe a revista e isso faz-nos olhar para dentro, nós que somos editores de duas revistas literárias, a Conhece-te e OBarrete, pois acontecem muitos bastidores antes de vocês, estimados leitores, lerem estas linhas.

O certo é que Lloyd Vogel extrapola e muito as 400 palavras e entrega à sua editora uma lauda com 10 mil. Não sabe ao certo se ela aceitaria, mas o perfil voltado também para dentro, autobiografia, acaba emocionando todos e depura assim as mágoas do seu autor, que “se perdoa” na sua conflituosa relação com o pai, intentando ser um pai e marido melhor, pois aprendeu e muito com os ensinamentos de vida do Sr. Rogers.
Mesmo este, que tinha como característica abordar assuntos complexos para as crianças no seu programa, como quando trata da morte, foi personagem reservado e que também tinha problemas de relacionamentos com os seus dois filhos. O convincente do filme é que mesmo que não goste de tipos bonzinhos e parecidos com pastores de autoajuda, não consegui fechar-me a este ar simpático, calmo e profético do Sr. Rogers, como quando ensina ao seu entrevistador que também as passagens ruins da nossa vida nos constituem e tem o propósito de nos tornarem melhores.
Após ler “Cândido” de Voltaire, quando este ridiculariza Jean-Jacques Rousseau com o seu ideal de bom selvagem, e quando o alter ego do autor recai sobre o cínico Pococurante, este filme é um contraponto e fez-me rever alguns conceitos, de que fazer o bem ainda é possível e, mais do que isso, necessário, neste mundo egoísta onde as pessoas, solipsistas em seu cerne, insistem em se fecharem e assim permanecemos todos, encerrados no nosso mundinho de mini certezas. E se nos propuséssemos a nos abrir mais em relação ao outro ser humano que nos toca? Fica a sugestão.
2 thoughts on ““A Beautiful Day In The Neighborhood”: Como um simples artigo de revista se pode transformar num filme maravilhoso”