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Não é fácil falar sobre esta série. “The Queen’s Gambit”, ou em português “Gambito de Dama“, chegou à plataforma de streaming da Netflix há menos de dois meses e desde cedo se percebeu: é um sucesso. Há quem consiga ver uma temporada inteira num só dia ou numa só noite, mas eu cá gosto de prolongar mais estas aventuras prazerosas. Este “Gambito de Dama”, nome retirado de uma jogada de xadrez, é-nos apresentado em formato de minissérie, mais precisamente em sete episódios. Como é possível deduzir, esta tem muito xadrez ao longo da sua história, mas felizmente para o espectador, há muito mais.

Beth Harmon, personagem interpretada de forma sublime por Anya Taylor-Joy, é uma jovem que desde cedo fica órfã da sua mãe após um grave acidente de viação. Já o seu pai é uma personagem praticamente inexistente, pois um pouco mais à frente percebemos que este seguiu um rumo de vida totalmente diferente da sua filha e respetiva mãe. Nunca se estabeleceu uma relação.

Anya Taylor-Joy (Beth Harmon)

Estamos na década de 1960, nos Estados Unidos da América, estado de Kentucky, e Beth dá entrada num orfanato na esperança de “ganhar” uma nova família. Desde cedo, a série criada por Scott Frank e Allan Scott destaca o passado da nossa personagem principal e a forma como toda essa bagagem influencia o seu presente e futuro. A faceta mais pessoal e humana nunca é descartada, sendo este um dos fatores que contribui para o apego emocional entre o espectador e Beth Harmon ao longo da série. Somos expostos aos medos, receios e vícios de Beth, que desde cedo molda uma personalidade peculiar e uma agilidade mental fora do normal.

O flashback é um mecanismo por muitos utilizado, pois contextualiza o presente e o passado, levantando certas questões e respondendo a outras. Em “Queen’s Gambit” a técnica não difere, com os timings a serem sempre certeiros. Voltando ao orfanato, Beth cedo se destaca na disciplina de matemática, mas por outro lado é obrigada a ter uma educação rija no que toca às regras de “como ser uma boa mulher de casa” e aos valores católicos. Contudo, esta não se molda ao estilo de vida clássico americano, tendo a sua curiosidade levado a abrir a porta mais mágica da sua vida – a cave, onde Mr. Shaibel (Bill Camp) jogava xadrez sozinho. O caminho começava a ser traçado.

A curiosidade da jovem Beth levou-a a que Mr. Shaibel lhe ensinasse a jogar xadrez. A nossa personagem encontrava aqui finalmente algo que a apaixonava. Graças aos ‘calmantes verdes’ que eram administrados a todas as jovens do orfanato, Beth parecia ganhar uma espécie de super poder ao conseguir delinear estratégias e reformular jogos de xadrez na sua mente – sendo a analogia feita num tabuleiro fictício no teto do seu dormitório.

O seu amor pelo jogo levou-a a querer saber tudo sobre este, desde os históricos jogadores a todas as jogadas e táticas possíveis. No entanto, é de salientar o papel de Shaibel na vida de Beth, pois este é visto como uma espécie de figura paterna que incute na jovem jogadora a humildade e o respeito pelo outro. Ainda no orfanato, não posso deixar passar uma amizade relevante no percurso de Beth, a rebelde Jolene (Moses Ingram), que mais tarde voltaria a entrar em cena.

Marielle Heller (Alma Wheatley) e Anya Taylor-Joy (Beth Harmon)

Quando Beth sai do orfanato, já uma adolescente com uma personalidade vincada, esta passa a ser a nova filha de Alma e Allston Wheatley (Marielle Heller e Patrick Kennedy respetivamente). Um suspiro de liberdade. Ao início não é fácil, pois os Wheatley não têm propriamente muitas posses, e quando Allston abandona Alma, esta entra numa clara depressão que vem reavivar fantasmas na vida de Beth. Não sendo o lado emocional o mais saudável, a adolescente refugia-se no seu “mundo de 64 casas”. Esta começa a ir a torneios e a ganhar algum dinheiro. Alma, que vê na “filha” uma janela de oportunidade, apoia-a e torna-se manager dela. O salto estava dado.

A série consegue ser bastante oportuna no que toca ao papel da mulher na sociedade, pois em todos os torneios de xadrez a maioria dos jogadores eram homens, tendo Beth de lidar com esse confronto por parte da opinião feminina e masculina. No entanto, a sua qualidade enquanto jogadora sempre falou mais alto, destacando a série os feitos e triunfos da jovem Beth ao invés das lutas feministas que já se faziam sentir pelos Estados Unidos. A fama começou a surgir, com Beth a ser capa de revista e apelidada de novo prodígio do xadrez. Não era para menos, pois esta só vivia para ser a melhor. No entanto, a abertura de horizontes seria inevitável.

No seu primeiro grande torneio, em Paris, a série entra num outro patamar. A jovem adulta ganha perceção dos prazeres da vida, desde o sexo masculino à moda. Enalteço este capítulo da história para o seu brilhante guarda-roupa. Beth Harmon passa de um nome localmente conhecido para o centro da esfera mediática, ou se quiserem, a superstar. O seu glamour, atitude e inocência combinadas fazem desta personagem alguém muito especial. Os cenários dos hotéis, as maneiras de estar das pessoas em seu redor, revelam que a produção fez um trabalho excecional, seduzindo assim o espetador para uma viagem ao passado.

“O xadrez nem sempre é competitivo. O xadrez pode também ser belo.”


Beth Harmon

De salientar que por esta altura Beth já havia perdido a sua mãe “emprestada”, Alma, vítima de hepatite. Esta morreu no fim de num importante torneio no México, onde a nossa protagonista teve a sua mais pesada derrota. A mais pesada porquê? Porque falamos do russo Vasily Borgov (Marcin Dorocinski), o único oponente de quem Beth tinha medo. Após esta aventura a jovem prodígio cresce em vários aspetos, enaltecendo a sua auto-determinação e confiança em lidar com ambientes desconhecidos. A carência também acabou por se fazer sentir, mas ao longo do caminho Beth colheu amizades que se revelaram acertadas. E é que voltamos à cena do início da série.

Ao contrário do que o espectador espera, o desfecho desta cena não é satisfatória. E é aqui que a narrativa ganha uma nova vida, ou seja, uma desintegração da personalidade da nossa personagem. Compreendemos que Beth Harmon não é indestrutível, entrando esta numa espiral depressiva e de indefinição. Conseguimos compreender por esta altura que a falta de alguns alicerces na sua vida resultam num défice sentimental, tornando-se esta um espírito mais libertino e, ao mesmo tempo, perdido. Mas a salvação acabaria por chegar.

O objetivo estava traçado: ir à Rússia, à maior prova mundial de xadrez, e vencer Borgov. Para isso, Beth conta com a ajuda de todos os seus amigos, como uma espécie de retrospetiva a toda a gente com quem estabeleceu uma boa relação ao longo da sua vida e carreira. Um hype ao valor da amizade simultaneamente a um reforço da premissa de que, por muito bons que sejamos num certo ofício ou arte, nunca iremos chegar ao topo sozinhos.

É óbvio que a este ponto, a nossa jogadora de xadrez é já conhecida em quase todo o mundo, sendo mesmo uma referência feminina em várias esferas da sociedade, pois não nos podemos esquecer que ainda estamos no final da década de 1960.

Não seria eticamente correto contar o desfecho desta magnífica série, mas posso adiantar que a coda é intensa e completa, pois nunca a produção perde a visão nem a qualidade dos pormenores. Achei por bem dar um maior contexto à fase mais inicial da narrativa, pois pode parecer ser uma história banal, mas a Netflix é responsável por nos trazer uma das séries da mais completas dos últimos 10 anos. Minissérie, melhor dizendo, mas será assim tão relevante? É bom saber que esta não terá continuidade, pois os ingredientes juntaram-se nas doses certas para originar um marco nas produções do streaming.

“The Queen’s Gambit”, ou “Gambito de Dama”, é uma experiência inesquecível. De uma forma algo natural, mediatiza um desporto por muitos ignorado, o xadrez, que tem muito mais que se lhe diga. Nessa vertente, a série é bastante transparente e rica na forma como aborda as táticas e todo o mindset de um pré e pós-partida. O elenco é rico e versátil. Nomes como os de Harry Melling, que interpreta Harry Beltik, ou Thomas Brodie-Sangster, que dá vida ao carismático Benny Watts, completam da melhor forma a grandiosidade de Anya Taylor-Joy. Sem dúvida, este é, para já, o destaque na carreira da atriz norte-americana de 24 anos.

Já sendo uma das séries mais vistas de sempre na Netflix, “Gambito de Dama” merece todo este mediatismo. Os diálogos, a caracterização, a montagem, a riqueza intelectual e sentimental, tudo contribui para um universo muito próprio e sedutor. Marcada pela diferença, esta minissérie é obrigatória para todos aqueles se interessam por história, moda, desporto, e acima de tudo, bom gosto. Xeque-mate!

Rating: 4 out of 4.

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One thought on ““The Queen’s Gambit”: Tudo bate certo

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