Já foi dito que a crónica é um género literário menor. Muito atrelada aos jornais que reportavam os factos quotidianos das nossas vidas e que, no dia seguinte, serviriam para embrulhar peixes. Não comungo desta tese. Histórias folhetinescas foram o embrião de cânones da literatura universal, a ver Honoré de Balzac (1799-1850) e Victor Hugo (1802-1885), só para ficar em dois franceses e, nesta terra de Cabral, a lista é imensa: Machado de Assis (1839-1908), o maior escritor brasileiro; Lima Barreto (1881-1922), com as suas denúncias sociais e raciais; Nelson Rodrigues (1912-1980), com o pseudónimo Suzana Flag a escandalizar a sociedade bem comportada com as suas taras e hipocrisias;
Fernando Sabino (1923-2004), o nosso bom mineiro, que exportou para o Rio de Janeiro uma leva de bons escritores nestas montanhas de Minas Gerais; Affonso Romano de Sant’Anna, Frei Betto, Carlos Herculano Lopes e o intrépido Luis Fernando Verissimo, este último uma clara referência para a promessa Raphael Cerqueira Silva, natural de São Geraldo e atualmente residindo em Visconde do Rio Branco, cidades mineiras. Funcionário público do Judiciário, escreveu o livro “Confissões“, é colaborador de textos da Revista Conhece-te e da Vicejar. Mantêm o blog Reminiscências literárias.

Neste “A Vida Segue”, Raphael reúne crónicas que já haviam sido publicadas no seu blog e nas revistas acima citadas. Há uma leva de inéditos e a seleção proposta em blocos temáticos ajuda a compreender o universo do escrevinhador. “Flanando” convida-nos a passear com ele por Visconde do Rio Branco. Aparentando ser um funcionário público anódino, pelo menos para quem esbarra com ele, percebe-se exatamente o contrário. Como se ele praticasse voluntariamente o autismo e o exercesse com competência e sempre um esgar de riso na face.
Como levar a sério bastidores de viagens, banalidades ditas na praia; as viagens de Umberto e um passeio a capitar (sic) Juiz de Fora? A fila de vacinação da COVID-19 indica-nos o presente e a ida à repartição pública é cheia de sobressaltos, quando se encontra um “amigo” então, faz-nos ter a certeza de que a profecia de Jean-Paul Sartre (1905-1980) é verdadeira: “O inferno são os outros“.
Encontros toscos nas portas: da padaria, do cinema e todas aquelas conversas que se iniciam do nada e chegam a lugar nenhum. Nisso tenho que concordar com Raphael: a proferir besteiras, bem fariam as pessoas se ficassem caladas. A pegada de humor nesta primeira leva de crónicas contagia, como no causo do matuto que intenta consultar na Cidade Maravilhosa, o Rio de Janeiro. O autor é vingativo: passa para o papel as imbecilidades observadas ao derredor. Boca fechada, cérebro tipo ventoinha.
O segundo bloco, que dá nome ao livro, é mais introspetivo e desesperançado. Como se a vida fosse contada no tique-taque do relógio, no tempo pandémico que igualou domingos, feriados e dias comuns. Só mesmo riscos no calendário de modo a nos dar um norte na condução das nossas sobrevidas. Sobrevidas, pois o vírus maldito está a ser compreendido no calor do momento, num autêntico voo sem radar. Desesperança e ira, principalmente do presidente da república que vocifera asneiras em escala industrial. Esta passagem é dolorosamente real, cito:
“O sol tomba no chão rubro de sangue. Há sangue por todos os lados: no planalto, sob as estátuas chamuscadas, nos adros, nos jardins, nas câmaras, nas fazendas do agronegócio, nas salas de estar dos cidadãos de bem, nos gabinetes, nos puteiros, entre os livros tombados em desuso, nos discursos moralistas, no canto de artistas de bota e chapéu, nos corredores forenses e hospitalares… O país sangra. Como o touro alanceado na arena. O país sangra. A plateia, extasiada, urra e aplaude. O touro bravamente resiste, suportando sua sina.“

Antídoto para os dias modorrentos? A arte. O deleite de ler um bom livro, deleitar-se com um jornal selecionando os cadernos culturais, inspirar-se e escrever significa a célula da sobrevivência (sim, alguns escritos saem a fórceps) e o sentimento pela perda do ator Tarcísio Meira (1935-2021) é tocante, como se simbolizasse os milhares de mortes devido ao vírus maldito. A crónica sobre a formiga me fez remeter ao talentoso Ignácio de Loyola Brandão. Agora já sinto uma certa familiaridade com o prosador, entendendo os outros passamos a entendermo-nos a nós mesmos. Nunca o sentimento de alteridade se fez tão presente.
O terceiro alude à nostalgia, com a chamada “Coisas da Senhora Nostalgia”. Reminiscências da infância, do pai maquinista (existe algo mais característico de Minas do que o comboio?); da Páscoa e dos bancos escolares. Passeando pela cidade e uma corajosa afronta à superestimada Clarice Lispector (1920-1977), a meu ver com as suas baboseiras tipo pseudofilosofia que infestam como nuvem de gafanhotos o mundo virtual.
Dezembro, Papai Noel, a primeira namoradinha na escola (amor não correspondido) e a esperança infantil de que no ano novo tudo será diferente. Ledo engano. A seção continua com diários, Domingos de Ramos, coroação de Nossa Senhora no mês de maio, com os anjinhos, chocolate e outros sabores que cheiram às lembranças. De escrita delicada e fragmentária, como partes de um caleidoscópio existencial rico e cheio de senões.
A quarta seção se intitula de “Em casa” e esta embala-nos no conforto das nossas idiossincrasias. Filmes, séries televisivas, livros, músicas, tudo apresentado despretensiomente e que serve como guia para conhecermos as referências do autor. E muitas telenovelas. Vencendo um preconceito de que homem não deve gostar de novelas e sim de futebol, aqui a inversão se deu. Recordando, a única menção que fez ao desporto bretão foi para gozar com os flamenguistas em excursão: o nosso escritor parece estar ao lado de bárbaros. Silvio Santos, o grande comunicador do Brasil, é assistido e a solidão também cobra o seu preço, um certo estranhamento se verifica na mente inquieta e corrosiva de Raphael.
As críticas são ferinas, impacientes com a lerdeza e estupidez. Há um diálogo respeitoso na menção a um grande escritor do Brasil, Mouzar Benedito, nosso parceiro de Revista Conhece-te. Na crónica “O que dizem os leitores” já se percebe a repercussão dos seus textos, especialmente de senhorinhas católicas e bem-comportadas aconselhando o escriba a não ser tão desaforado assim. Roberto Carlos, o autointitulado Rei, é elogiado e ficamos assim adentrados ao domicílio de Raphael, com muita televisão, pipoca de micro-ondas e reflexões.

Em “Filme antigo” não se trata de menções à Sétima Arte apenas. Antes é um resumo deste universo tão peculiar de Raphael. Mais “inferno são os outros” ao quase ser agredido por um vizinho e entender que discrição e bom comportamento são preceitos que não estão na cartilha de todos. Ele descontou bem os desaforos escrevendo estes relatos, e podem ter certeza de que a publicação do livro não o fará correr risco de integridade física. Os tipos retratados por ele não são consumidores de arte, quiçá um mero livro, os pobres diabos não devem ter a capacidade intelectual de ler sequer um recado afixado no íman do frigorífico.
Com satisfação li a obra, remetendo-me a um outro cânone, o italiano Umberto Eco (1932-2016) com o seu “A Misteriosa Chama da Rainha Loana“. Bom saber que das montanhas de Minas Gerais desponta mais um grande escritor brasileiro.
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